domingo, 17 de março de 2013

A Nona Cruzada

A verdadeira distância entre o púlpito e a violência


Essa não é a primeira vez que me proponho a discutir religião no blog. A ausência de ineditismo, no entanto, pode ser perdoada pelo que parece adquirir formas cada vez mais articuladas de uma nova cruzada para o cristianismo.

Como a última batalha já está perdida faz tempo, lá em 1270 com a assinatura de um acordo de paz com o sultão Baibars, um novo inimigo tem sido o grande alvo das preocupações organizadas cristãs: o homossexual. Fico à vontade para generalizar porque se por um lado não são todos os cristãos combatentes dos homossexuais ou da homossexualidade, me refiro às "preocupações organizadas cristãs" como definição satisfatória para o grupo em questão. 

Aliás, estamos diante de um período razoavelmente interessante da história do cristianismo em que as divisões causadas na maior religião monoteísta do mundo parecem insignificantes no momento em que os esforços dão conta do combate.

Essa prática, claro, não é novidade. De frente ao inimigo em comum, o fator agregador é inflado, as diferenças momentaneamente esquecidas e o que vale mesmo é o enfrentamento. De repente alguém fala até em "essência cristã" pra combater o mal.

Na verdade os islâmicos não eram os grandes vilões do cristianismo na Idade Média, nem no período das Cruzadas. Se tem um Inimigo nº 1 no auge do Teocentrismo, esse inimigo é o pecado, difundido por sua vez por seus agentes especiais. 

Grande alvo do cristianismo em alerta, a mulher era entendida como principal máquina propulsora do pecado. A figura de Eva - que segundo a tradição comeu o fruto da árvore do conhecimento, proibida - serviu de instrumento legitimador da opressão contra a figura feminina de maneira geral, contraposta apenas à Maria - modelo feminino idealizado pelos homens -, como referência moral ideal e inalcançável às simples mortais.

A mulher, o herege, o judeu, o islâmico. Mas o inimigo primeiro do cristianismo ao longo do período medieval não era o pecado? Pois bem, como amplificadores dele, mulher, herege, judeu, islâmico e mais tiveram sua humanidade suprimida e o resultado não poderia ser outro: a brutalidade. Incontáveis foram as vítimas do Tribunal do Santo Ofício que torturou, matou, silenciou e enfiou a religião do "amor ao próximo" goela abaixo da Europa e de boa parte do mundo.

Novos tempos, século XXI, e mais uma vez nada de novo no front. Legalmente muita coisa avançou, é claro, mas o cerne da questão envolvendo o "Outro" no cristianismo permanece intacta muito tempo depois do último condenado à fogueira pela Inquisição. Porque toda a violência do cristianismo diante do pecado descende de cada um dos discursos inflamados a respeito destes sujeitos agentes dele.

Neste sentido, nenhum outro personagem tem sido tão requisitado pela intolerância quanto o gay. Símbolo da subversão máxima da ordem "natural" do corpo - que é usar o próprio sexo para fins de reprodução, portanto sempre com o oposto -, o homossexual tem sido alvo de tantas difamações quanto agressões.

65% dos homossexuais já sofreram alguma agressão física, verbal ou sexual e os números só têm crescido. São entre 10 e 12 mil discriminados por ano, ao passo que a criminalização penal só acontece em cerca de 10% dos casos. Isso em grande parte porque continua congelado o Projeto de Lei 122, que prevê ajuste na legislação a respeito do racismo e inclui, assim, penalização diante da violência voltada especificamente contra o homossexual.

O principal argumento contrário ao projeto? A Constituição. Isso mesmo. Se a motivação do ódio diante da prática homossexual descende de um código moral formulado há 3.000 anos atrás, a defesa da bancada cristã hoje no Congresso é a Constituição. "Liberdade de expressão" é o principal argumento veiculado, ainda que segundo o STF discurso de ódio não configure qualquer liberdade de expressão.

Para as preocupações organizadas cristãs, vale o Antigo Testamento como fundamento para o ódio. Para a manutenção dele, vale a Constituição. Hoje, a oposição ao PLC 122 representa para os homossexuais o que a ausência da Lei Maria da Penha representaria às mulheres. Isso porque boa parte das agressões aos homossexuais ainda não é caracterizada como crime de ódio. Tanto que um episódio de violência, mesmo o de Luís Alberto Betonio, que teve duas lâmpadas fluorescentes quebradas no rosto, pode ser no máximo caracterizado como "lesão corporal", da mesma forma que uma briga convencional de bar por dor de corno ou time de futebol.


A defesa preferida das preocupações organizadas cristãs, no entanto, é clichê: "somos contra o pecado, e não os pecadores". Quer dizer, nada contra você, só contra o que você faz, que precisa ser eliminado. Qual a distância entre o repúdio ao comportamento homossexual num púlpito de igreja e uma lâmpada na cara de um deles? Nenhuma. Porque muito antes desse grupo sair de casa com duas lâmpadas para dar no rosto de alguém, o cenário já estava preparado para isso. Antes da violência, a justificativa da ausência de humanidade do sujeito homossexual já serve de álibi para ela.

Não estou dizendo que todo pastor evangélico quebra lâmpadas no rosto de gays, mas que seu discurso serve de fundamento moral para a violência. A negação da humanidade plena do Outro é o primeiro e último álibi para a agressão.

Hoje é presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados o pastor Marco Feliciano. Ao contrário do que querem acusar, o problema não está no fato de Feliciano ser pastor. Bom pra ele. Mas estamos falando aqui de um sujeito que além de usar o púlpito para pedir a senha do cartão magnético de um fiel também declarou publicamente que a AIDS é o câncer gay, que os bissexuais são os verdadeiros responsáveis pelo transporte do HIV para os héteros e que os negros têm origem genealógica amaldiçoada por Deus. Primeira providência no cargo de presidente? Discussão sobre HETEROFOBIA. Isso, os gays são espancados mas o presidente da CDH toma providências contra a discriminação sofrida pelos héteros (?!).

Hoje é escolhido papa Jorge Maria Begoglio, que além de cúmplice da ditadura argentina entre anos anos 70 e 80 já se posicionou claramente a respeito dos grandes inimigos da Igreja na contemporaneidade: aborto, educação laica e, claro, homossexualidade. E também hoje a central de notícias Gospel Mais tem pelo menos metade das manchetes do portal ocupadas de maneira direta ou indireta à questão homossexual. Há inclusive artigos evangélicos que celebram a escolha do novo papa!


De qualquer maneira, o fato é que enquanto tem curandeiro sendo preso por charlatanismo, tem pastor pedindo senha do cartão, incitando ao ódio e sendo premiado por isso com presidência de comissão fundamental para o fim das discriminações. 

E ainda há quem fale sobre plebiscito para o casamento gay. Quer dizer, decide sobre o seu casamento quem acha que ele é válido ou não. Na base, aí reside o grande problema das ordens religiosas monoteístas, em geral. Como entendem o Deus único como espelho moral ideal, não basta que o próprio filiado se vincule ao código mas que, principalmente, todos os outros também.

O Estado laico manda abraços.

E eu também. 

Abraços,
Murilo.