sexta-feira, 27 de setembro de 2013

A Função Social da Vida

Nas políticas públicas sobre o aborto no Brasil, o que está em jogo não é a vida do feto. E o juiz é todo mundo menos quem o carrega


Sancionada sem vetos pela Presidente da República Dilma Rousseff, em 1º de agosto, a Lei 18.845/2013, que tramitava no Congresso desde 1999, finalmente delega ao Estado uma série de obrigações em relação a vítimas de violência sexual. Dentre elas, determina que os hospitais forneçam às violentadas atendimento especializado e multidisciplinar: diagnóstico das lesões no aparelho genital; amparo médico, psicológico e social; prevenção e combate de doenças sexualmente transmissíveis; realização de exame de HIV; acesso e informações sobre direitos legais. Ainda, a lei determina que os hospitais forneçam as chamadas "pílulas do dia seguinte", como parte do direito à anticoncepção de emergência.

Ainda que a determinação soe como novidade diante do alto número de protestos encabeçados pelos movimentos "Pró-Vida" e "Pró-Família" (já falei um pouco sobre a náusea que esses movimentos provocam), o aborto em caso de estupro no Brasil é legal desde 1940. O único dispositivo acrescido à normativa consiste no fornecimento das pílulas, o que, de acordo com a Igreja, facilita a prática do aborto. De acordo com nota da CNBB, a distribuição favorece casais que não se preveniram na hora do coito - mas usar camisinha não era proibido? Enfim...

Não é de hoje que a discussão sobre o aborto toma as mídias como um todo. E também não é de hoje que as instituições religiosas tomam frente nela. Mas hoje é, talvez, o momento mais crucial na elaboração de políticas públicas que deem - e não substituam - voz às minorias.

Essa preocupação começa a fazer sentido cada vez mais alarmante à medida que as posições do poder público têm sido ocupadas por representantes de uma maioria ardida pra cacete. E quando digo maioria, atentem pro fato de que me refiro à maioria étnico-social, e não matemática. Por isso é possível dizer, por exemplo, que as mulheres são minoria, ainda que representem 51% da população brasileira e sejam, portanto, maioria numérica. Da mesma forma, não dá pra negar que os negros sejam minoria étnica, ao passo que representam 6,5% a mais do que os brancos na demografia racial do Brasil.

Na prática, não é difícil compreender o tamanho do estrago causado por essa confusão, causada pelo péssimo costume de entregar pautas de minorias nas mãos de maiorias muito pouco interessadas em transformações concretas em favor da diversidade - não é mesmo, Feliciano?

De qualquer forma, amanhã (28/09) é o Dia Latino-Americano e Caribenho pela Legalização do Aborto, e os rumos desta discussão são alarmantes em terras tupiniquins. Ao passo em que 1 a cada 5 mulheres já realizou algum aborto na vida e que uma mulher morre a cada dois dias no Brasil em decorrência de abortos inseguros, o Congresso Nacional hoje caminha no sentido da criminalização da prática:



PL 5.069/2013 - Encabeçada por Eduardo Cunha (PMDB/RJ) e João Campos (PSDB/GO), a proposta tipifica como crime o "anúncio de meio abortivo", prevendo penas específicas para quem induz ao aborto.

PDC 42/2007 - A sugestão do deputado Henrique Afonso é de sustar a norma técnica de "prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes". Ou mais ou menos neste sentido: obrigar vítimas de estupro a darem à luz e, ainda, sem assistência. O projeto tem parecer favorável na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, elaborado pelo ex-deputado evangélico Henrique Afonso (PTB/RJ).

PL 4.703/1998 - Francisco da Silva (PPB/RJ) pretende transformar a interrupção da gravidez em crime hediondo, junto a tráfico de drogas e estupro.

RCP 21/2013 - Isso, os deputados João Campos (PSDB/GO) (esse é o mesmo que pretende revogar a decisão do Conselho Federal de Psicologia que proíbe psicólogos de tratarem a homossexualidade como doença) e Salvador Zimbaldi (PDT/SP) apresentaram o requerimento de uma CPI para investigar "a existência de interesses financeiros e internacionais para promover a legalização do aborto no Brasil". 178 deputados assinam. Apenas 9 são mulheres.

PL 1.618/2013 - Roberto Brito (PP/BA) pretende criar um código de acesso telefônico para mulheres em situação abortiva (um "disque-aborto"). Quem estará do outro lado da linha? Eu não sei, mas o relator do projeto de lei é Secretário de Mobilização e Articulação da Frente Parlamentar Mista em Favor da Vida, Vice-Presidente da Frente Parlamentar Evangélica e Pastor da Igreja Evangélica Brasil Para Cristo. 

PEC 164/2012 - Eduardo Cunha e João Campos atacam novamente. O projeto pretende estabelecer a inviolabilidade do direito à vida no exato momento da concepção. Pingou, viveu.

PL 2.423/1989 - O projeto é velho, mas ainda tramita. Pretende tipificar o aborto como crime de tortura. O autor é o ex-senador Jamil Haddad (PSB/RJ).

PL 478/2013 - Este é o famoso projeto que institui o Estatuto do Nascituro. Proíbe o aborto em todos os casos, inclusive o terapêutico e o resultante de estupro. Além disso, criminaliza a prática como hedionda.



Das 34 proposições do legislativo federal com o tema "aborto", 31 caminham neste mesmo sentido.

Fruto em grande parte da tradição judaico-cristã, a vida parece muito mais do que um direito. Na verdade se tornou um dever tão cego quanto a obrigatoriedade do voto ou o serviço militar. De qualquer forma, tal qual a terra, a vida assume cada vez mais funções sociais, regulamentadas pela frágil - mas eficiente - máscara da proteção.

No Brasil, o índice de abortos é de 30 para cada 100 nascimentos. Um número extremamente alto, sobretudo para um país que ainda não conseguiu estabelecer parâmetros claros para a prática. Em países nórdicos, onde (como em 74% dos países no mundo) o aborto não é crime, são entre 15 e 20 abortos para cada 100 nascimentos. 

Não por coincidência, a figura da mulher é historicamente associada à natureza. Como se fosse ela fruto de uma continuidade inerte e o homem - esse sim - suscetível às transformações da história, como bom guardião da razão. Descende desse princípio a ideia de que cabe ao homem deliberar pelo seu futuro, assim como o seu presente e também o passado - desde pelo menos o Jardim do Éden, certo? 

Essa é uma das poucas questões que não deveriam ser debatidas nem pelo Estado, nem - e muito menos - pela Igreja. Defender o direito do aborto não significa instituir sua obrigatoriedade, tampouco ser favorável à prática abortiva em si. Quem é contrário ao aborto deveria lutar por políticas públicas de saúde e qualidade de vida que estimulem as mulheres a gestarem os filhos, e não por códigos penais que as coloquem atrás das grades.

Os números estão aí. E as mulheres não vão deixar de interromper a gravidez em função da condenação moral ou legal. A única coisa que está em jogo - e apitado por todo mundo menos elas - é o direito que elas têm de continuarem vivas depois do aborto.

Para quem tanto diz que a defende, os Movimentos Pró-Vida matam mais do que todos os abortos juntos. E vão continuar matando enquanto a barriga da mulher continuar sendo tratada como patrimônio público.



Abraços, 
Murilo

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

11/09: Segurança e Liberdade no Limiar do Século XXI

12 anos depois dos atentados em Nova Iorque, como ainda enfrentamos o medo coletivo


Sociólogo de sensibilidade singular, o polonês Zygmunt Bauman diz que dois elementos fundamentais determinam a felicidade humana: liberdade e segurança. O que ele mesmo sabe, no entanto, é que a convivência simultânea dos dois é invariavelmente improvável, pelo menos de acordo com a experiência ocidental que se convencionou denominar de modernidade.

Se existe um grande legado deixado pelo 11 de setembro no mundo ocidental, trata-se da confissão coletiva de que cada vez menos importa esta tal liberdade, ao passo em que cada vez mais se luta pela segurança, a grande vedete do século XXI. Não por acaso, de todos os avanços na direção de políticas públicas internacionais de promoção humana e, portanto, liberdade, restou apenas a fumaça dos escombros do World Trade Center, implodido como um castelo de cartas em pleno centro nevrálgico do mercado econômico mundial numa terça-feira de 2001.

Especularam-se 60.000, 30.000, 10.000 e, por fim, 3.000 mortos foram confirmados no atentado que entrou pros anais da história como "o maior de todos os tempos". E pelo menos no quesito estético este dado é indiscutível. Com transmissão ao vivo simultânea em quase todos os países do mundo, os atentados de 11 de setembro nos EUA não inauguraram a espetacularização do terror, mas potencializaram como nunca um freak show na veiculação de imagens que nos levaram pro interior daquelas duas torres que se estatelaram no chão de Manhattan. Estadunidenses ou não, olhamos pro céu naquela manhã como se um boing fosse passar rasante pelas nossas cabeças e a correria se estendesse de Nova Iorque ao Capão Redondo, de Tóquio à Vila Osório.

Muito rapidamente, autoridades vieram a público para acalmar uma multidão de amedrontados que, no auge do desespero, recorreram a esconderijos de emergência que funcionam no Ocidente da tempestade na casa de Dorothy no Kansas aos ataques nucleares mais potentes. 

Nos EUA, a Lei Patriótica deu as cartas do que seria, afinal, a tônica deste século que enfim estava inaugurado. A grande força do mundo desde o fim da Grande Guerra assumia de vez que sem garantias de segurança, autonomia alguma fazia sentido. Tão orgulhosos dos princípios constitucionais que nortearam a construção da "terra da liberdade", aprovaram em tempo recorde um pacotão de medidas que cerceavam liberdades até então intocadas por uma das mais estáveis democracias do mundo contemporâneo.

Dentre outras medidas, a Lei Patriótica permite a emissão de ordem de busca sem que se apresente causa provável e a detenção por tempo indeterminado de suspeitos em locais de transição, como aeroportos e rodoviárias. De quatro para o executivo e as forças armadas, o Congresso americano voou como nunca na direção de um estado de guerra permanente.

Dos incontáveis presos confundidos com terroristas e "interrogatórios" promovidos pelos serviços de "inteligência" norte-americano e europeu, principalmente, restam histórias dramáticas de uma liberdade que dava sinais de falência em território familiar. Porque longe dali ela já havia morrido faz tempo.


Foi também num 11 de setembro, também numa terça-feira de manhã, que aviões sobrevoaram o Palácio La Moneda em Santiago depois da relutância do seu presidente, Salvador Allende, em deixá-lo depois de uma série de avisos vindos... de Washington. Foi com a guarnição da Casa Branca que o general Augusto Pinochet bombardeou não apenas o símbolo do poder no Chile, mas também o sonho de uma América Latina, pasmem, livre.

Eleito democraticamente em 1970, Allende nacionalizou terras e indústrias, enfrentou duma vez só a elite chilena e o primo rico das Américas, e pagou com a vida o preço de uma liberdade que o mundo ainda não estava autorizado a gozar. Em 11 de setembro de 1973, assinou com um tiro de AK-47 na própria cabeça a rendição que militares e americanos exigiam. 

A trajetória do Chile não é a única na América, muito menos no mundo: Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Bolívia, Peru, Paraguai, Vietnã, Coreia, Cuba e tantas outras nações, de grande ou pequeno porte, viveram experiências similares de usurpação de liberdade baseada numa segurança tão justificável quanto os mais de 200 mil mortos pela "Guerra ao Terror" do nosso tempo.

12 anos depois dos atentados em Nova Iorque, o 11 de setembro de 2013 nos convida para uma inflexão inevitável após exatamente 10 anos de invasão sobre o Iraque, justamente no momento em que se coloca na mesa a decisão de bombardear a Síria para retirar do poder a dinastia al-Assad, eleita, aliás, décadas atrás não pelos sírios mas pela Casa Branca que estendia os seus interesses ao mundo árabe desde a descolonização.

Depois de um ataque de armas químicas lançado contra os rebeldes que ameaçam o presidente que exerce o mandato desde 2000 - e até agora sem comprovação de autoria -, os escoteiros da segurança mundial preparam nova intervenção que tem tudo para soar mais uma vez desastrosa. 

Em março de 2003, quando clarões de luz cortavam os céus do Iraque durante a madrugada que mudou os rumos da história do país, o principal argumento da invasão - e que ainda convencia - era a manutenção de armas de destruição em massa pelo governo Hussein. Antigo aliado de Washington, o líder sunita agora fugia como rato numa caçada que terminou quase um ano depois, num buraco perto de sua cidade natal.

As armas de destruição em massa nunca foram encontradas. Mas isso não impediu que, 10 anos depois do início da intervenção, 190 mil pessoas fossem contabilizadas mortas na operação. Deste montante, quase 140 mil são civis. 4,5 mil são militares norte-americanos e 3,5 mil são contratados. As forças de segurança do Iraque perderam mais de 10 mil vidas. Morreram ao todo mais de 300 jornalistas e prestadores de serviços humanitários. E estes são apenas os números oficiais registrados. Os reais provavelmente nunca saberemos.

Já são mais de 2,2 trilhões de dólares gastos num projeto que tinha tudo pra ser abortado com a eleição de Barack Obama: o melhor discurso, as melhores propostas, e certamente a maior esperança. Desde a sua eleição em 2008, perdeu a queda de braço com o Congresso e hoje não tem dificuldades em assumir que não deu conta de construir um novo conceito de liberdade, este que permite que as pessoas sejam... livres. Não fechou Guantánamo, não deixou o Iraque, não retirou o apoio a Israel contra a Palestina e hoje é protagonista de um dos maiores escândalos de espionagem pós-Guerra Fria, além de reivindicar o direito de intervir sobre um mundo árabe em caos.

Me lembro perfeitamente daquele 11 de setembro. O medo que senti era completamente diferente dos que normalmente me atormentavam como garoto: o valentão da escola, o chinelo da mãe ou os sapos que apareciam no quintal. Todos eles podiam ser enfrentados com recursos simples de proteção. Mas nem o diretor, nem a vó, nem o estilingue guardado no baú afastam o medo de aviões que podem a qualquer momento atingir um alvo tão comum como prédios comerciais de uma grande cidade.

O medo que senti não foi isolado. Todo mundo sentiu. E assim como não encontrei ninguém suficientemente capaz de me proteger contra ele, todo o Ocidente não encontrou. É neste momento que a liberdade está autorizada a descansar enquanto a capa defensora do Estado anuncia que os aeroportos estão fechados, você será revistado, retirado do show de sua cantora favorita, e ninguém mais se mexe porque uma caixa de sapatos em frente à Assembleia de Deus pode guardar uma bomba.

Neste caso, tudo bem não ser feliz. E muito menos livre. Nos entregamos à segurança de tal forma que a mesma liberdade que tanto desejamos se tornou a principal inimiga da felicidade que hoje, mais do que nunca, afasta seus dois elementos fundamentais constitutivos com a mesma naturalidade com que uma invasão é chamada de guerra.

Se Bauman está certo, estamos tão seguros quanto livres.

Abraços, 
Murilo