quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Medos Privados em Lugares Públicos

Qual a relação entre a caixa de comentários na internet e os acidentes de trânsito





Na semana passada, o artigo Metal Sheherazade derrubou algumas barreiras limítrofes e foi parar no blog Farofafá, da Carta Capital. O número de visualizações foi - e tem sido até agora - assustador. Um rápido passeio pelos compartilhamentos do texto pela revista no Facebook dá uma dimensão da repercussão. Consequência quase inequívoca em ocasiões como estas são os comentários. Eles são muitos. E não têm a menor intenção de parecer apenas fração coadjuvante de uma paisagem.

De alguns que li, separei os melhores - não apenas os direcionados a mim - para degustação:

Annie Hall   Responder
Te perturbei, não, palhaço? 
Lua Lua   Responder
Essa Annie Hall é uma JUMENTA que deve fazer seu mestrado na UNIBIBOCA já que não entende uma virgula sequer de música. [...] Annie Hall, tá gastando muito dinheiro na UNIBIBOCA com seu mestradinho meia boca em história, aproveita essa grana e compra alguns livros de história da música, sua ANTA! 
Max de Macedo   Responder
Assim como eu você deve está cansado de esquerdices esquisofrênicas e de direitices insanas [...]. Vamos começar a dizer que funk é lindo para não ser a próxima vítima dessa raça!! 
Mario   Responder

26 anos, né? Você deve estar chateado porque o Justin Bieber foi preso. E claramente não faz a menor ideia do que tá falando. Tenho pena dos seus alunos. Vai se informar, moleque . 
Bruno Rafael   Responder

Mais um apedeuta que se julga escritor, esquerdoide, e que mama nas tetas do estado. 
Henrique Farias   Responder

Kkkkk… texto muito tosco. Tentar comparar James Brown a Mc Catra e cia é algo tão ridículo que chega a dar dó. Não quero nem entrar no mérito das letras pq isto é óbvio demais para mim… digo isso estritamente do ponto de vista musical mesmo. Alguém que se diz “guitarrista”, “violonista”, “vocalista”, “gaitista” e o diabo a quatro, querer comparar um som monofônico sem melodia e harmonia com o som produzido por James Brown?! Esse cara deve ser guitarrista no Guitar Hero… kkkk 
Renata Vasques   Responder

Funk é musica de oprimido, rolezinho é movimento social….ok quando fores assaltado não reclama é um desfavorecido se empoderando encima do seu lombo, quando for violentado relaxa e goza, afinal esta sendo atribuído a você o papel de coadjuvante, como objeto libertador, para que o desajustado possa se realizar sexualmente ! 
HENRIQUE ÀLEXIS   Responder

O QUE OS BRANCOS DEVEM FAZER É TIRAR ESSAS MÃOS PORCAS DE CIMA DA MÚSICA NEGRA ! ! ! 
Carlos T.   Responder
Mas que lixo. Nunca li tanta bobagem e pasmaceira num post só.
Quanta picaretagem. Vago na medida de sua mediocridade. 
Décio   Responder

Tomem todos em seus respectivos cus.

A atriz Sandra Bullock foi notícia no início do mês quando sentenciou que "nenhum ser humano deveria ler a caixa de comentários ou se procurar no Google a qualquer hora". Confessou à revista People que decidiu procurar despretensiosamente pelo seu nome na ferramenta de buscas e se arrependeu: 

"De algumas coisas eu tenho muita consciência. 'Sandra Bullock já passou dos 40' apareceu muito. Eu sei disso. 'Sandra Bullock já está muito além dos 40'. Sei disso também. 'Não há nada especial na atuação dela. Ela não é particularmente atraente, não a suporto, ela é mediocre. Ela passou dos 40'"

"Havia muitos comentários sobre quem eu namorei. Alguns são verdadeiros e alguns eu nunca admitirei. Fui lembrada que já dei uns amassos na Meryl Streep. Fora das telas, não necessariamente uma escolha dela. Eu meio que a peguei de surpresa"

Na última segunda-feira, completou-se o primeiro ano da tragédia na boate Kiss em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Quando a primeira notícia sobre o caso foi publicada, nas caixas de comentários choveram não tantas manifestações de solidariedade aos familiares das vítimas ou lamentos próprios de um evento tão perturbador, mas enxurradas de ofensas morais aos jovens que estavam numa boate, e não numa igreja.

Desde que começou a usar o Tumblr, em 2010, Lindsay Bottos tem recebido toneladas de comentários anônimos extremamente grosseiros sobre as suas fotos que frequentemente iam para o ar. Seus "defeitos" eram a magreza, as axilas não depiladas, entre outras características criminosas como ser ela mesma. O grau de violência das manifestações era tão assustador que Lindsay fez disso um projeto de arte: junto a cada foto, um comentário anexado como parte da imagem.

  

Blogueiro do Chuva Ácida, endereço virtual que combina brilhantemente a realidade local de Joinville com as questões político-sociais do mundo, o professor doutor da Universidade Federal do Paraná Clóvis Gruner conta que foi graças a alguns destes "gracejos" que a equipe do sítio decidiu moderar os comentários para, ao menos, não permitir ofensas particulares aos autores: "No fim do ano passado, um anônimo comentou que eu era insuportável e que tinha pena da minha mulher e do meu filho, que conviviam comigo". Ainda assim, seus artigos quinzenais continuam sendo alvo de um ódio inexplicável. Basta dar um "rolezinho" nos comentários da sua postagem sobre os... rolezinhos

Bom, nem tão inexplicável assim. A estridência dos comentários é parte de uma confusão já denunciada algumas vezes aqui mesmo no Desafinado. Público e privado são universos que não coabitam desde que o mundo é mundo. São invenção contemporânea de uma clivagem que até o século XVIII não existia claramente.

Criação ética burguesa, a distinção entre público e privado esteve na esteira do rompimento da simbiose entre coroa e nação. O fim do poder absolutista do monarca era também parte deste desligamento emblemático: dinheiro público e dinheiro privado desde então não são mais a mesma coisa. Exército nacional e segurança particular também não, assim como não são mais os mesmos princípios que regem o Estado e a casa do seu governante máximo. Bem por isso que a morada na residência oficial não passa de uma estadia passageira, sentenciada à finitude de um estado provisório, condicionado pela estrutura burocrática da democracia. 

Mas são outros tempos. Tempos em que os espaços público e privado têm novamente se fundido, em grande parte por causa do encolhimento natural do primeiro diante da ascensão do segundo. Isso também em termos físicos. É possível admitir a importância do direito à privacidade ao mesmo tempo em que, por outro lado, são poucas as opções de habitação no coração dos grandes centros urbanos além de cubículos justapostos denominados apartamentos. Criados para apartar visualmente uma convivência inevitavelmente próxima, eles são uma bela referência do quanto distância e proximidade estão separados por uma linha tão tênue quanto a faixa de concreto que os separam.

Estes também são os tempos do ônibus lotado que assiste um de seus passageiros berrar ao telefone com o amigo do outro lado da linha. Pode ser por dezenas de minutos. Terminada a ligação, os fones de ouvido voltam ao seu lugar de finalidade, enquanto o usuário checa seu feed no Facebook, carregado com novas atualizações de status e lugar dos amigos de rede. Numa fração de segundos, a janela para o público se fecha e o privado assume as rédeas de uma jornada solitária no interior do coletivo.

Na sua dissertação de mestrado, defendida em 2002, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, a socióloga Alessandra Olivato abordou a problemática do caos nas grandes cidades a partir de uma perspectiva inovadora. De acordo com a sua pesquisa, existe uma correlação de causalidade entre a dificuldade de delimitação dos espaços e os altos índices de acidentes e mortes no trânsito: "não há noção de espaço público e de civilidade na orientação da conduta dos usuários de trânsito em São Paulo". Olivato destacou também que "a tentativa de cumprir a lei não está relacionada ao bem comum, mas a princípios religiosos, ao caráter ou à boa educação familiar". 

Relacionado ao lugar do desagradável, o espaço público também tornou-se sinônimo de competição. Afinal, é nele que se batalha por uma nova vaga de emprego ou cadeira nas Universidades. A privatização do espaço público é o que erigiu a construção de "muros" entre as pessoas e, neste sentido, avalizou a ideia de que, se as leis são consideradas injustas pelo cidadão, já existe então motivo suficiente para burlá-las. Resultado: o trânsito é a maior causa de mortes entre jovens de 15 a 29 anos no Brasil. Alessandra Olivato ainda reforçou que nada menos que 90% destes acidentes são determinados pelo fator humano.

Talvez a lógica dos carros seja a ideal para a atual relação do homem com o espaço público. Mais do que através deles e da sua tecnologia, os carros substituíram a experiência do sujeito com as cidades à medida que a ausência de preocupação com o bem-estar comum invadiu as ruas de grandes ou pequenos centros urbanos. O carro é uma oportunidade de deslizar pela cidade sem efetivamente estar nela. Bunker móvel com alto valor de mercado e apelo estético, oferece TV, blindagem, som, DVD, poltronas reclináveis, ar-condicionado, celular, internet e até relaxamento para simular a realidade confortante do lar. 

Esse é o panorama de uma rua que mais parece um autódromo. Se no interior do um espaço privado as regras são individuais - ou, no máximo, familiares -, o resultado não poderia ser outro: o caos.

É nesta lógica que estão inscritos os comentários da internet. Seu espaço é indiscutivelmente público. São milhões de usuários que podem acessar o mesmo endereço e conviver como em qualquer sala de estar. Mas o seu mecanismo de inclusão é privado: é no interior da minha casa, do meu bunker, que o meu aceno público se manifesta. Não por acaso, o comportamento na rede se assemelha ao da casa, afinal é nela que a face do íntimo se revela aos níveis mais exacerbados. É no interior do lar que a polidez da vida pública dá lugar à selvageria que somente a privacidade pode esconder. 

Daí a velha reação do homem ao medo diante do que lhe foge à compreensão, tal qual sua natureza sugere, como ensinou a escola freudiana. É com a violência de um comportamento no interior de lavanderia de roupas sujas em casa que o desacordo na vida pública torna-se escancarado aos moldes extremos da vida privada. Caps Lock ativo, pontos de vulnerabilidade na mira e o gatilho pronto de uma metralhadora semi-automática que carrega a insígnia dos maiores medos privados em lugares públicos.

Apesar da aparência, a caixa de comentários na internet não é uma aberração da natureza. É sintoma de uma civilização que, literalmente, saiu da casinha.



Abraços, 
Murilo

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Metal Sheherazade

James Brown é bom demais. Mas o argumento de que é bom porque sua música e sua letra irrompem as barreiras da trivialidade e encontram com o sublime é mais do que desonesto. É imbecil.



A descoberta do rock é uma experiência libertadora. Não é por acaso que, pra grande maioria, aconteça na adolescência. O rock é uma espécie de mecanismo que destrava as amarras do superego, construído ao longo de qualquer infância mais ou menos normal. E existe algo de solitário neste desbravo: na casa, ninguém mais; na rua, ninguém mais; na escola, quase ninguém mais.

Me lembro com detalhes do primeiro CD do Guns n' Roses que veio parar em casa, no alto da Vila Osório. Certamente os vizinhos também. Era inexplicável o sentimento de uma audição que, pela primeira vez, parecia fazer algum sentido. Nunca havia gostado de música até então. Nunca. Appetite For Destruction é uma surra num saco de pancadas. E talvez eu continuasse não gostando exatamente da música, mas da surra. E ela era muito boa.

Aos poucos, a vivência solitária do rock é substituída pela identidade que ele oferece como poucas outras inscrições. Cresce o cabelo, preteia o guarda-roupas e o discurso afina tanto quanto a voz de Paul McCartney. Não demora muito para que a inserção no seleto grupo de adoradores do rock esteja condicionada a uma série de rejeições. 

Verdade seja dita, essa regra que vale para toda identidade: para ficar dentro, você precisa estar fora de uma porção de outras. Por exemplo: não basta ser palmeirense, é preciso odiar o Corinthians para fazer parte da comunidade de palmeirenses no mundo. Da mesma forma, para ser roqueiro mesmo é preciso rejeitar o que os outros gêneros têm a oferecer.

Mas existe algo de perturbador nisso, levando em consideração o que significou o rock pra história do Ocidente na última metade de século. O rock n' roll nunca teve nada de refinado. Aliás, quando tentou isso, nos apresentou barbáries como o metal melódico, por exemplo. Nos anos 50, os acordes de Chuck Berry eram rápidos, desleixados, e o que chamava atenção não era a perfeição na execução das notas, tampouco o alto grau de complexidade nos arranjos, mas aquele espasmo de libertação que o rock pode causar como poucas experiências. O conteúdo das letras? Mulheres, bebidas e, claro, o próprio rock' roll.

Na mesma década, um bom menino, de origem cristã, encantou o mundo com passos rápidos no palco e um penteado inconfundível. Elvis Presley levou milhares de fãs ao delírio enquanto transformava o rock num fenômeno mundial. Ele também não estava discutindo as novas tendências da Escola de Annales, na França, ou as implicações do pós-estruturalismo no mundo contemporâneo.

Nos anos 60, os Beatles levaram o gênero ao auge com uma verdadeira revolução no mercado fonográfico: meninos do subúrbio de Liverpool que se tornaram famosos tocando coisas simples que todo mundo gostaria de ouvir. Hoje é praticamente impossível apontar alguém que 1) não goste de Beatles ou 2) não tenha suas composições influenciadas, de alguma forma, por eles.

Apesar do sucesso, levou um tempo (e há quem diga que até hoje funciona assim) pro rock sair da clandestinidade que o assolou. Quando o Kiss veio ao Brasil pela primeira vez, em 1983, a comunidade cristã abraçou o estádio do Maracanã em protesto pela presença dos "Cavaleiros a Serviço de Satã", como eram conhecidos pelos mais conservadores nos EUA. 

Woodstock foi considerada uma experiência lastimável de degradação moral e consumo indiscriminado de drogas. Jimi Hendrix foi um dos porta-vozes desta geração com um estilo único de tocar: liberdade na montagem dos acordes, uma agressividade nunca vista nos arranjos e um tapa na cara no conservadorismo consumista do american way of life - e isso nunca de maneira direta. John Lennon dormiu com a mulher numa vitrine para protestar contra a lógica brutal da Guerra do Vietnã. 

50 anos depois de uma porção de lutas pela diversidade, hoje me surpreende o fato de que parte da comunidade do rock esteja a frente de bandeiras nem tão progressistas assim. Chamo esse fenômeno de "Metal Sheherazade".

Ela apareceu há cerca de 3 anos atrás. Foi ovacionada depois de um comentário estridente na TV Tambaú sobre o Carnaval na Paraíba. Rachel Sheherazade foi rapidamente transformada em ídolo por escancarar as máximas do pensamento reacionário do tempo presente sobre o Bolsa Família, a dignidade humana dos presidiários e, claro, os rolezinhos. 

Quando foi notícia a aprovação de uma candidata com projeto sobre Valesca Popozuda, no mestrado em Cultura e Territorialidade da Universidade Federal Fluminense, comentou - já no SBT:

"É, as universidades se popularizaram e, com elas, os temas das teses de mestrado. No projeto intitulado 'My Pussy é Poder', o funk carioca, que fere os meus ouvidos de morte, é descrito como manifestação cultural. Pior é que ele é, pois se cultura é tudo que o povo produz, do luxo ao lixo, funk é tão cultura quanto bossa nova. Sinal dos tempos, né? A tese da estudante Mariana Gomes abordou também a possível relação entre as divas do funk, do naipe de Valesca Popozuda e Tati Quebra-Barraco, e o feminismo. Parece até piada. Com letras impronunciáveis para o horário, e que mostram a mulher como objeto sexual, as funkeiras estão anos luz aquém do feminismo. O projeto se propõe a estudar tudo isso a fundo. Mas será que o assunto tem profundidade pra tanto?"


Deixando de lado o fato de que no Mestrado não se apresenta tese, mas dissertação, Sheherazade não está sozinha. Reproduz um discurso nada entalado nas gargantas de uma classe média que entende tanto de música quanto de cultura ou do mundo acadêmico. Aquela que gosta de sertanejo, mas - grife-se - o de raiz. Aquela que aprecia o funk, mas o James Brown.

Ontem, foi frisson no Twitter a série de comentários da usuária "Annie Hall" sobre os shoppings como palco pra bailes funks. Tudo começou depois de uma postagem de Pedro Sanches que dizia o seguinte: "'Shopping não é lugar de baile funk' = shopping é lugar de comprar mooooooito e sair calado." 

Pronto, Annie Hall foi pra cima com toda a sua bagagem intelectual. Entre outras argumentações, disse que bailes funks são umas das coisas mais grotescas que já viu, que deveriam ser feitos em clubes e não em shoppings. E mais: "não é música pq só tem ritmo, a dança é horrível e as letras, bem, não existem.." Não demorou muito e, claro, "ah sim, o funk do James Brown e do Parliament-Funkadelic (são geniais).. pq o que fazem aqui é um LIXO". "Bom, aquilo não é música, só isso. Não existem notas musicais, nem na horizontal, nem na vertical.. #UF (unfollow) e boa esfregação no baile"

Flavia Penido entrou na discussão e trouxe algumas informações que não deveriam ser tanta novidade assim: diziam a mesma coisa do samba (esse que hoje é glorificado como antítese do pagode) e do maxixe, tanto que, como lembrou, "a polícia PRENDIA quem tocava samba. Tinha músico que andava com salvo conduto". 

Irritada, Annie Hall encerrou a conversa com uma autoridade acadêmica invejável:
Confira a discussão toda aqui

Para acabar com quaisquer dúvidas, aqui temos um dos maiores sucessos de James Brown (a "antítese" do funk carioca), o clássico Sex Machine:

Fellas, I'm ready to get up and do my thing (yeah go ahead!)
I wanta get into it, man, you know (go ahead!)
Like a, like a sex machine, man (yeah go ahead!)
Movin' and doin' it, you know
Can I count it off? (go ahead)
One, two, three, four!
Get up (get on up)
Stay on the scene, (get on up), like a sex machine (get on up)
Get up (get on up)
Stay on the scene, (get on up), like a sex machine (get on up)
Wait a minute!
Shake your arm, then use your form
Stay on the scene like a sex machine
You got to have the feeling sure as you're born
Get it together, right on, right on
Get up (get on up)
Hah!
Get up (get on up)
You said, you said you got the
You said the feeling
You said the feeling you got to get
You give me the fever 'n' a cold sweat
The way I like, it is the way it is
I got mine 'n' don't worry 'bout his
Get up (get on up)
Stay on the scene, (get on up), like a sex machine (get on up)
Get up (get on up)
Bobby! Should I take 'em to the bridge? (go ahead!)
Take 'em on to the bridge! (take em to the bridge!)
Should I take 'em to the bridge? (yeah!)
Take 'em to the bridge? (go ahead!)
Hit me now!
Come on!
Stay on the scene, like a sex machine!
The way I like it is, is the way it is
I got mine, (dig it!), he got his
Stay on the scene, like a lovin' machine
Stay on the scene
I wanna count it off one more time now (go ahead!)
You wanna hear it like it did on the top fellas? (yeah!)
Hear it like it did on the top? (yeah!)
Hit it now!
Get on up (get on up)
Get up (get on up)
Get up (get on up)
Get on up (get on up)
Stay on the scene, (get on up), like a lovin' machine (get on up)
Get up (get on up)
Taste (get on up)
Bein' (get on up)
Get up (get on up)
Stay on the scene, (get on up), like a sex machine (get on up)
You gotta have the feelin (get on up)
Sure as you're born (get on up)
Get it together, right on, right on
Right on, right on (right on, right on)
Get up (get on up)
And then, shake your money maker
Shake your money maker (6x)

Get up (get on up)
Huh!
Get up (get on up)
Can we hit it like we did one more time, from the top?
Can we hit like that one more time
(One more time!)
One more time!
Let's hit it and quit! (go ahead!)
Can we hit it and quit? (yeah!)
Hit it!


Qual a diferença entre o conteúdo das letras de James Brown e de MC Dandara? Pouca. Acontece que um deles caiu nas graças da crítica especializada do centro tempos depois e foi imortalizado pelas amarras do chamado "bom gosto". Aliás, Woody Allen (Annie Hall) tem o que de refinado nos seus filmes? Gosto muito da obra do cineasta norte-americano, mas dá pra chamá-lo de gênio? 

James Brown é bom demais. Mas o argumento de que é bom porque sua música e sua letra irrompem as barreiras da trivialidade e encontram com o sublime é mais do que desonesto. É imbecil. São os mesmos "bons costumes" de hoje que ontem nos colocaram atrás das grades.

E o carnaval? Quantas vezes a "devassidão moral" dele nos dias de hoje não é confrontada com a "inocência" dos "tempos de antigamente"? Pois bem, essa marchinha dos anos 20 dá a dica:


Me choca que parte das pedras atiradas contra o funk repouse justamente onde mais se receberam apedrejamentos. A experiência libertadora individual do rock parece ter encurtado o caminho rumo à direita e o que se conquistou nos anos 60 para o centro hoje é negado para as margens. Lobão e Roger estão aí pra mostrar que a liberdade de manifestação tem lugar, e muito bem marcado.

A libertação pessoal de Ted Nugent também parece não ter sido o suficiente para que o guitarrista norte-americano aprendesse alguma coisa sobre discriminação. Abrindo show pro Kiss, chegou a dizer que imigrantes que não falam inglês deveriam ir embora dos EUA. Em 2003, adjetivou com as piores qualidades negros e asiáticos. 





Durante o último Rock in Rio, Rachel Sheherazade perdeu a compostura e os bons costumes durante o show do Iron Maiden. Foi à loucura ao som de The Evil That Men Do. Tem razão, é uma puta - desculpa - música.



Por um rock mais Hendrix e menos Sheherazade. 

Salute, 
Murilo

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

O Rolezinho do Ressentimento

A Síndrome de Nero da classe média brasileira e a "elite intelectual" das redes sociais sobre a maior polêmica de janeiro

Foto: Bruno Poletti/Folhapress

Sempre achei que minha adolescência demorou a chegar. Pra ajudar, estatura baixa, um time de futsal de pelos no corpo e uma coleção da latinhas denunciavam a infância alargada. O crescimento foi abrupto, o time de pelos deu uma evoluída da quadra para o campo, mas a fisionomia sempre acusou idade inferior à real. O que pode parecer o paraíso quando se está na meia idade, é o inferno quando se tem 17.

17 talvez seja a pior idade possível: demais pra ser criança, de menos pra ser adulto. Era uma droga não poder dirigir. Era uma droga não poder beber. Uma vez, prendi os longos cabelos, mergulhei nos Sabonetes Francis e fui pro show de um Pantera Cover, lá no Jardim das Américas, em Curitiba. A entrada custava uns 10 dinheiros. Entrou um, outro, mas quando fui entrar... você não pode. Mas não pode por que? Porque aqui menor de idade não entra. Envergonhado, chamei o resto dos amigos pra dar meia volta em direção ao apartamento assistir umas fitas VHS do Pantera verdadeiro.


Muito tem se falado sobre os "rolezinhos" nas redes sociais. Os rolezinhos são, basicamente, passeios organizados pela juventude periférica de São Paulo desde o fim do ano passado. Aos montes, entram nos shoppings centers pra, como dizem, "zoar, dar uns beijos, tumultuar, pegar geral, sem roubos". A reação ao fenômeno foi imediata: lojistas acionaram a segurança, a PM e até a justiça pra coibir a prática. Sem pestanejar, cada órgão, na sua esfera, fez o que sabe fazer de melhor com esse público, já conhecido de outras primaveras: você não pode.

Antes do estouro nacional da polêmica, Eliane Brum deu a dica de ouro pro significado básico do rolezinho e o motivo da sua rejeição: o passo pra dentro. Os shoppings foram construídos pra manter esse público fora, o que por muito tempo funcionou. Hoje, os objetos de desejo das margens são os mesmos que os do centro e o nariz torto dos seguranças já não é mais barreira pro afastamento.

Por pouco tempo, acreditei que nada mais precisava ser dito sobre o assunto depois do texto de Brum, mas a reação aos passeios e ao próprio texto da jornalista me convenceram do contrário. A atitude de lojistas e autoridades não surpreende, se for levado em consideração o posicionamento da massa pensante na internet. Pelo Facebook, um tal de Doutor Gori sintetizou o "espírito crítico" de boa parte da rede diante dos rolezinhos:

A turma do rolezinho bem que poderia diversificar um pouco. Tem o Museu da Língua Portuguesa - quem sabe se interessam em aprender a escrever corretamente; Pinacoteca do Estado - para ter contato com uma fruição estética que ultrapasse o limite de muro pichado e bunda de piriguete; Concertos da Osesp - infelizmente não tem nenhuma música a Anitta no repertório, mas vale a pena; Universidade de São Paulo (exceto FFLCH) - para tomar contato com jovens que buscam melhorar de vida mediante estudo e esforço próprio. Ah, mas é claro: isso é coisa de burguês opressor. Deixa pra lá.

Ele não é o único. Através do Twitter, uma enxurrada de "sugestões" caminharam no mesmo sentido: "Rolezinho no Poupa Tempo para tirar carteira Profissional de Trabalho, ninguém quer!!", disse o perfil Levante-se Brasil. "Ninguém marca um rolezinho pra tirar carteira de trabalho e procurar um emprego, né?"  Mas afinal, o que realmente incomoda nesses passeios?

Outro dia, alguém estava horrorizado com o fato de que, nas casas assistidas pelo poder público, há TVs de muitas polegadas e um celular por cabeça enquanto a telha precisa ser consertada. Esse alguém é o espectro de uma classe média inconformada com a ascensão de uma camada que, até ontem, precisou implorar por um tênis, qualquer tênis. Hoje ela quer Nike. E não há nada mais inadmissível do que uma pobreza que não se contenta apenas em comer.

Quando nas mãos da elite, o consumo adquire ares de desenvolvimento. Quando na mão dos pobres, de futilidade. Esta curiosa associação tem muito a revelar sobre a Síndrome de Nero de uma classe tão heterogênea quanto intolerante. Famoso por assassinar a própria mãe, que o colocou no poder, e por colocar fogo no trecho de Roma onde construiria um dos maiores palácios reais que o mundo já viu, o imperador Nero era obcecado por tecidos na cor púrpura. Puniu com a morte quem ousou se vestir de modo similar.

Há muito tempo já se sepultou a ideia de que os regimes ditatoriais instalados na América a partir da metade do século XX tenham sido instituídos exclusivamente pelos militares. Mais do que permissivo, o papel da classe média neste processo decidiu os rumos da Guerra Fria pro lado de cá do Equador. Foi ela que financiou o Comando de Caça aos Comunistas no Brasil. Ela que levou às ruas o movimento Patria y Liberdad, no Chile, autor do boicote que paralisou toda rede de transportes e abastecimento no país - dentre outras peripécias - durante o governo socialista de Allende. 

A classe intermediária vê na histeria a principal resposta pros conflitos existenciais causados pela desconfortável posição de quem sonha em ser burguesa e, ao mesmo tempo, morre de temor pelo rebaixamento ao nível operário assalariado.  Como se estivesse sendo sugada pro subsolo, atira pra todos os lados e acerta todas as sensibilidades possíveis da desrazão contemporânea.

Quando dispara que a turma do rolezinho bem poderia diferenciar um pouco, visitando a USP para tomar contato com jovens que buscam melhorar de vida mediante estudo e esforço próprio, Doutor Gori e o chorume médio apelam pra queridinha do bando que dobra à direita sem medo de ser feliz: a meritocracia. A USP é famosa pela resistência à adoção de políticas de inserção - cotas - entre seus muros. Dentre os cursos mais concorridos, apenas 1 aluno negro ingressou na instituição em 2013. 

Não é de se estranhar que o "Doutor" não recomende um rolezinho na FFLCH, afinal é lá que esta desproporção avassaladora poderia ser problematizada pra algo além de "todo mundo tem as mesmas chances", "são as cotas que instituem o racismo" ou "o racismo está na cabeça das pessoas". Ou é por que lá "todo mundo usa alucinógenos"? Aliás, fumar um na gangue do Doutor é coisa de descolado. Na favela, de drogado.


Essa varredura contra a pobreza nos shoppings hoje não é surpresa. Durante o processo de construção da "cidade maravilhosa", Rodrigues Alves limpou as ruas do Rio de Janeiro no limiar do século passado escoando a "ralé" para as margens. Nos anos 70, Jaime Lerner "limpou" o centro de Curitiba com a velha obsessão paranaense pela ascendência europeia. Poucas analogias funcionaram tão bem desde a fundação da história do Ocidente do que esta entre pobreza e sujeira - e, consequentemente, doença. Até "sou pobre, mas sou limpinho" se inculcou a repetir.

Mesmo o Orkut foi abandonado há cerca de 3 anos atrás porque a "nova classe média" havia tomado conta de lá. Hoje, o grande problema é que estão "orkutizando" o Facebook, certo? Maldito Balneário Camboriú que também foi orkutizado. 

Essa é a principal marca ideal da pobreza: a distância. Enquanto ela se mantém longe, o funcionamento do cosmos parece estar em ordem. Com os rolezinhos, a barreira foi rompida e o conceito de espaço público está em xeque.

Com 17 anos, o ódio pelo segurança que me barrou na entrada da casa de shows a tempo de acompanhar o DJ Jeison Metal durou pouco mais de duas horas, talvez pela vergonha. Não existe sentimento pior do que não ser bem-vindo. Mas, neste caso, havia uma regra: menor de idade não entra. Nenhum menor de idade entra. E não precisa ser nenhum PhD como o Doutor Gori pra saber por quê.  



A justificativa que hoje encontraram os shoppings é que os rolezinhos causam baderna e afugentam os clientes. Seria verdadeira, não fosse o fato de que estes são espaços regularmente frequentados por excursões e confraternizações, como os "Bixos da FEA USP". "Loooooooko, loko loko loko loko, é FEA USP", centenas gritam sobre as mesas na praça de alimentação do Shopping Eldorado. Os seguranças? Riem, passeiam, vão fazer outra coisa. O que esses jovens universitários têm é a chave de acesso aos espaços públicos: a cara branca e a naturalidade de um rolezinho jamais negado.

Dentre certa ~elite intelectual~ das redes, fez-se chacota das discussões encaminhadas por Eliane Brum e uma porção de jornalistas não muito satisfeitos com a pura definição de que os rolezinhos são uma merda. Multiplicaram-se as piadas sobre a mania de uma esquerda - agora chamada de "caviar" - que enxerga "luta de classes" em tudo. Teve até quem dissesse que faltou Media Training pra um integrante do rolezinho que, em vez de dizer que ia ao shopping para contestar o opressor, confessou estar ali apenar pra zoar.

Sarcasmo imbecil e, acima de tudo, irresponsável. Hoje, a esquerda não celebra o rolezinho. Não vi um cientista social suficientemente imaturo pra dizer que os passeios nos shoppings são uma manifestação consciente de desafio à ordem burguesa capitalista. De fato, não são. Mas a violência da repressão tem se tornado um combustível tão inflamável quanto a letra dos antigos raps da periferia contestadora.

Enquanto se empobrece o debate sobre o fenômeno social destes eventos e suas implicações, reacionários aos rolezinhos conclamam marchas nas casas de Leonardo Sakamoto e Eliane Brum - acusados de defenderem essa baderna toda -,  além de outra no Congresso Nacional em... 31 de março. Sim, 31 de março.

Filipeta de divulgação do "rolezinho" no Congresso, organizado em reação às ocupações nos shoppings. Na caixa de comentários, o criador do evento compartilha um vídeo intitulado "ROLEZINHO? MAIS UMA MANOBRA MAQUIAVÉLICA DO PT E SEU GRUPO IMUNDO" 


Ao contrário do que se ventilou, ninguém é obrigado a gostar de "um bando de idiotas cantando funk na porta da sua loja". Ninguém mesmo. Mas a regra do RG, que eu vi aos 17, essa juventude negra das periferias não vê. Simplesmente porque aqui ela não existe. E o que hoje é uma brincadeira logo pode se transformar em revolta. Não existe sentimento pior do que não ser bem-vindo.     

PS: se o "Doutor" fizer um rolezinho no Museu da Língua Portuguesa, vai aprender que o que ele tem de melhor é qualquer coisa menos ensinar a escrever corretamente.

PS²: alguns meses depois, voltei pra finalmente ver o Pantera Cover. Foi uma bosta. Mas eu fui.



Abraços,
Murilo

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O Espetáculo do Horror em Pedrinhas

Enquanto meia dúzia de mórbidos gargalham com imagens de detentos em situação de humilhação nos presídios de todo país, o crime organizado faz da obsolescência das cadeias um prato cheio para a sua atuação cada vez mais violenta e articulada



6 dezenas de mortos, homens decapitados, deficientes mentais agredidos, mulheres estupradas e quase o dobro de detentos que a capacidade de abrigo são alguns dos componentes que integram o cenário das penitenciárias do estado do Maranhão. 

Os números são do Conselho Nacional de Justiça, detectados por inspeção realizada semanas antes da divulgação de um vídeo em que prisioneiros do Centro de Detenção Provisória de Pedrinhas, em São Luís, exibem os corpos mutilados de Manoel Laércio Santos Ribeiro, Irismar Pereira e Diego Michael Mendes Coelho - este último com apenas 21 anos -, decapitados no dia 17 de dezembro.

Enquanto esta semana a governadora Roseane Sarney licita lagosta, patinha de caranguejo e R$ 108 mil em ração para peixes nas residências oficiais, as autoridades maranhenses refletem a comoção que normalmente envolve a realidade do sistema prisional brasileiro. Ou seja, nenhuma. Ano passado o estado chegou a perder o repasse de cerca de R$ 20 milhões destinados pelo governo federal para a construção de 5 unidades penitenciárias.

O Maranhão é governado há 50 anos pela família Sarney. Carrega os méritos de ter a pior renda per capita  - R$ 360,43 -, a menor expectativa de vida e a segunda maior taxa de mortalidade infantil do país, 95,8% de domicílios sem saneamento básico, 20,8% de analfabetos e 460% mais homicídios desde 2000.

De qualquer forma, o episódio de dezembro em Pedrinhas, escancarado na última terça-feira pela Folha de S. Paulo, revela a urgência de um debate que, assim como tantos outros no país, ainda é tabu. Ao mesmo tempo em que órgãos como a Conectas Direitos Humanos, a Justiça Global, a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) pedem soluções urgentes para o caos da superlotação e condições de insalubridade nas prisões, a questão moral ainda parece desorientar o debate sobre o sistema carcerário no país.



Em 2011, o enviado da Folha de S. Paulo André Caramante divulgou dados oficiais das penitenciárias paulistas: são 37 novos presos a mais por dia, num déficit carcerário de quase 3 vezes o número de vagas disponíveis. Não é preciso ser nenhum gênio em matemática para descobrir que o inchaço anual causado por esse acréscimo é, no mínimo, alarmante.

O relatório do Conselho Nacional de Justiça, encaminhado no dia 27 de dezembro ao presidente do Supremo Tribunal Federal, atesta que, apesar da capacidade de comportar apenas 3.124 detentos, o Maranhão encarcera hoje 5.517 presos. 2.500 é o número de aprisionados somente em Pedrinhas, que pode abrigar, na verdade, apenas 1.700.

Como no interior do estado existem apenas pequenas cadeias e delegacias, é para Pedrinhas que são enviados tanto os presos mais perigosos quanto aqueles que não têm espaço nas pequenas selas das suas cidades. Em 2002, uma rebelião escancarou o problema ocasionado pela rotina de massacres que os prisioneiros do interior eram submetidos pelos da capital. Logo após o motim, reuniram-se na facção dos "baixadeiros", batizada posteriormente de Primeiro Comando do Maranhão. Uma dissidência no grupo formou os Anjos da Morte, mas em resposta os detentos da capital organizaram-se em torno do Bonde dos 40, considerado o mais violento do presídio.

São as facções que controlam a prisão. Encarregadas de recrutar novos integrantes logo no seu ingresso ao complexo, foram elas que permitiriam e determinaram as condições em que a própria vistoria do CNJ deveria ocorrer, além de também decidirem como são realizadas as visitas íntimas. Em grande parte das ocorrências no interior do presídio, aliás, a violência sexual atua como fator determinante. Presos com menor grau de influência na penitenciária vêem, com frequência, suas parcerias estupradas por detentos mais poderosos. Aqueles que tentam impedir são assassinados a sangue frio. Foram 200 presos assassinados no Brasil ano passado, 1/3 deles no Maranhão.

Além disso, diante da indisponibilidade de vagas no sistema de saúde, o estado maranhense tem cada vez mais encaminhado doentes mentais para os presídios. O resultado: constantes agressões e o seu extermínio.

Segundo o CNJ, o governo maranhense já havia sido avisado das péssimas condições dos presídios em 2011, quando realizou mutirão nos processos penais no estado e encaminhou às autoridades recomendações e Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), todos sem resposta.

Segundo técnicos, as prisões deveriam ter, no máximo, 800 detentos. Um número equilibrado de presos é importante basicamente para evitar quaisquer problemas de ordem estrutural, ocasionados, claro, pela  tentativa não muito eficiente de flexibilização da terceira Lei de Newton.

Enquanto isso, nas redes sociais, ainda proliferam manifestações de - mais que desprezo - ódio pelo detento. É este ódio que, em grande parte, impede a racionalização do debate sobre o sistema prisional no país, além de revelar o que há de mais podre na condição humana.



Se, por um lado, todo mundo concorda que lugar de bandido é na cadeia, por outro, há de se concordar que isso só pode acontecer desde que este lugar efetivamente exista e garanta condições mínimas de convivência no seu interior.

Primeiro que o nosso código penal desmente o mito da impunidade no Brasil. Se todos os usuários e transportadores de entorpecentes continuarem nas mãos das polícias militares, a tendência é que o inchaço se torne ainda mais insuportável nos próximos anos. Boa parte das mulheres que ocupam as cadeias hoje são presas pelo famoso "33", porte de drogas. Outras são enquadradas no "35", associação ao tráfico. Muitas delas são flagradas na tentativa de abastecer companheiros amorosos nas penitenciárias e acabam presas ali mesmo.

O resultado desta besteira é catastrófico: filhos pequenos em casa desamparados, mais superlotação nas cadeias e o verdadeiro problema, que é o tráfico violento e organizado, permanece imune. O grau de periculosidade destas garotas é absolutamente nenhum, mas ainda assim a criminalização do consumo e da distribuição das drogas torna o Estado refém do próprio autoritarismo.

Dentro das cadeias, os presos por pequenos furtos e delitos são integrados ao mundo real do crime. Ali a recuperação torna-se quase impossível diante dos pequenos infernos em que transformaram-se as prisões.


Mesmo quem gosta de aparecer nas redes sociais para incitar o ódio aos detentos é capaz de concordar que a superlotação dos presídios e a falta de condições de higiene no seu interior são um problema. Embolados em cubículos e cerceados de itens básicos de consumo, os detentos criam redes de influência e relações de poder que extrapolam o próprio olhar do estado. O portal UOL chegou a divulgar imagens de um presídio no Recife, considerado o pior do país, em que os próprios encarcerados têm acesso às chaves das celas para ajudar o trabalho dos agentes penitenciários.

Enquanto meia dúzia de mórbidos gargalham com imagens de detentos em situação de humilhação nos presídios de todo país, vítimas de violência física, sexual e psicológica, o crime organizado faz da obsolescência das cadeias um prato cheio para a sua atuação cada vez mais violenta e articulada.

"Eu gostaria de parabenizar as Faculdades Integradas de Itararé, por levar seus estudantes de Direito para conhecer presídios em Ponta Grossa-PR, numa tentativa de sensibilizar os estudantes com a situação deprimente dos detentos, e assim criar um exército de defensores de bandidos.

Gostaria que os senhores reitores das Faculdades Integradas de Itararé, levassem também seus valorosos estudantes de Direito para conhecer as famílias das vítimas do crime no Brasil, conhecer a mãe que teve o filho morto á tiros, o pai que chora todos os dias pela filha ter sido estuprada e morta, os irmãos que choram ao ver um membro de casa perdido na cracolândia e etc, mas não, vamos levar eles ao presídio pra eles ficarem com peninha dos vagabundos...

Lembrando que eu não estou criticando os estudantes aqui, principalmente porque eles são a nossa esperança de um dia termos um código penal reformulado e um país mais justo."



A violência no interior dos presídios é, há muito tempo, inaceitável fora deles, mas acabou naturalizada pelo julgamento moral dos presos e permitida por um inconsciente coletivo que atribui ao sujeito encarcerado status merecedor da pena que recebeu, ainda que boa parte dos aprisionados do país seja constituída por cidadãos ainda em processo de julgamento.

Em 2011, Heberson Oliveira foi estuprado e contraiu o vírus da AIDS numa cadeia do Amazonas. Seu caso poderia ser apenas mais um não fosse o fato de, 2 anos e 7 meses depois da prisão, ter sido declarado inocente pela justiça. Enquanto aguardava julgamento na Unidade Prisional do Puraquequara, mesmo sem provas materiais ou testemunhais que o apontassem como culpado pelo estupro de uma menina de 9 anos de idade, foi abordado pelos "xerifes" da prisão. Ele nem sabe quantos o violentaram.

Heberson entrou em depressão, tentou o suicídio por causa da discriminação sofrida no trabalho e tornou-se dependente químico (o hábito do consumo de drogas também foi adquirido na prisão). Desempregado, viciado e portador do vírus, luta por indenização do estado do Amazonas por ter sido declarado inocente. Mas e se não fosse? Quantas risadas mais seriam compartilhadas pelas redes sociais enquanto o detento definha pelas irreparáveis sequelas do encarceramento? Inocente, culpado, condenado ou não, de que maneira a violência dos presídios representa alguma manifestação de justiça?

O que esperam aqueles defensores da tese de que "bandido bom é bandido morto" é basicamente a proliferação da vingança, não da justiça. E o sucesso dessa empreitada tem sido implacável. O ciclo da vingança não se encerra na violência contra o detento. Aliás, não se encerra nunca.

Diante das denúncias do CNJ, a polícia militar do Maranhão interviu e ocupou Pedrinhas com a missão de confiscar celulares e armamentos. A resposta veio de imediato: segunda-feira, a menina Ana Clara Santos Sousa, de apenas 6 anos, morreu depois de passar 3 dias no hospital com 95% do corpo queimado. Ela, a mãe e a irmã, de 1 ano e 5 meses, foram vítimas da represália dos bandidos, que atearam fogo nos ônibus da capital na semana passada.

Ana Clara não é uma vítima do crime organizado maranhense, tampouco a única deste problema. É vítima dos "cientistas sociais" de internet que sub-humanizam detentos com a falácia da integridade moral e a mesma autoridade acadêmica com que utilizam a crase. Vítima também da multiplicação de mentiras tipicamente marcadas pela intolerância, como a história do "Bolsa Bandido", que nunca existiu. Ana Clara é vítima da escrotice geral que continua irracionalizando a discussão sobre os presídios no país e que, invariavelmente, esbarra na barbárie própria de uma civilização que ainda tem coragem de dizer que "direitos humanos são pra humanos direitos".

Se for isso mesmo, prefiro ser julgado pelos selvagens.

Abraços,
Murilo