quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

O Mito do Carnaval Inocente

Como o discurso conservador forjou um passado ideal para uma das festas mais populares do mundo




Não se trata de nenhuma novidade. Às vésperas do carnaval, documentários, entrevistas e bate-papos com os vizinhos resgatam uma interessante máxima a respeito de uma das maiores festas populares do mundo: "naquele tempo era tudo muito inocente".


Um texto atribuído a Danilo Gentili tem varrido as redes sociais com um discurso que delega ao Carnaval a culpa por uma série de problemas no país:



Em 2011, Rachel Sheherazade foi promovida da TV Tambaú para o SBT depois de atribuir ao Carnaval responsabilidades como acidentes de trânsito e um aumento brutal da devassidão moral, representada, segundo ela, pelas doenças sexualmente transmissíveis ou o batalhão de jovens engravidadas durante o feriado.




A origem do Carnaval remonta à Antiguidade. Entre hebreus, gregos e romanos, os festejos celebravam o sucesso nas colheitas com muita comida e muita bebida. Já na Idade Média, a Igreja passou a incorporar alguns destes eventos "pagãos" ao calendário oficial, também com o objetivo de conquistar novos fiéis não apenas através da porradaria. Assim como o Natal, o Carnaval foi incorporado ao calendário cristão com algumas adaptações. Deveria acontecer logo antes da Quaresma - os 40 dias sem carne antes da Páscoa.

Existe um significado simbólico nesta escolha. O Carnaval não foi criado, mas refeito sob a insígnia cristã por um motivo razoavelmente simples: o de um poder que percebeu que, pra poder dizer não, também precisava dizer sim. Pra negar os prazeres da carne durante os 361 dias restantes, em especial os 40 depois da festa, era preciso celebrar como nunca uma liberdade provisória, condenada por um intenso controle religioso teocêntrico.

Já no século XIII, surgiram os bailes de máscara, protagonizados exclusivamente pela nobreza italiana. No século XIX, a festa já estava razoavelmente popularizada no continente europeu, com personagens presentes até hoje nos salões, como Pierrô, Arlequim e Colombina.

No Brasil, existe Carnaval desde pelo menos o século XVII, algum tempo depois da chegada dos portugueses. O século XIX trouxe a onda carnavalesca europeia para o país, mas ela era restrita a entrudos familiares ou populares. O Entrudo Popular tinha brincadeiras grosseiras e violentas, como o lançamento de urina, sêmen ou água nos participantes.

É somente na década de 1920 que o Carnaval ganhou as ruas, com os sambas e as marchinhas. Aliás, as próprias marchinhas já nasceram como uma subversão descarada à ordem das tradicionais marchas militares. Hinos oficiais e cânticos de disciplina e ordem foram transformados versos descontraídos e desafiadores.

Verdade seja dita, as marchinhas nunca foram conhecidas exatamente pela inocência. A primeira delas, composta por Chiquinha Gonzaga, celebrava o pertencimento à lira, ou seja, à boemia e à farra. Em 1920, logo depois da maior pandemia do século, causada pela gripe espanhola, a marchinha de maior sucesso bradava os seguintes versos, indicados conforme o sexo do cantor:

Cavalheiros
Na minha casa não se racha lenha!
Damas
Na minha racha! Na minha racha!
Cavalheiros
Na minha casa não há falta d'água!
Damas
Na minha abunda! Na minha abunda!
Damas
Na minha casa não se pica fumo!
Cavalheiros
Na minha pica! Na minha pica!

No Carnaval de 1954, a marchinha "Saca Rolha" dizia: eu passo a mão na saca, saca, saca-rolha, bebo até me afogar. "Me dá um dinheiro aí" celebra a mendicidade para fins exclusivamente etílicos. E se não der... você vai ver a grande confusão. Sucesso com Carmen Miranda, em 1941, "Mamãe eu quero mamar" também não precisa ser entendida exatamente um antro de bons modos com as mamães. 

Na letra de Mirabeau Pinheiro, sucesso no Carnaval de 1953, pode me faltar o amor / Há, há, há, há! / Isto até acho graça / Só não quero que me falte / A danada da cachaça.

Pode ser realmente que o Carnaval tenha sido melhor num passado distante. Mas se o argumento pra essa conclusão for a inocência de outrora nos salões, acho que na verdade fomos nós que nos tornamos um tanto mais caretas.

Abraços,
Murilo

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Chuva Ácida: "A Onda"




Caros, 

Este fim de semana tive a honra de colaborar com a seção Brainstorming, do blog Chuva Ácida. O artigo discute a correlação entre as políticas públicas de distribuição de renda, especialmente nos últimos 10 anos, e a ascensão da onda conservadora que vive o país, talvez não por acaso no cinquentenário do golpe militar. Clique aqui e confira o texto "A Onda" na íntegra.

Abraços, 
Murilo

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

O Conar e a Danilogentilização da Propaganda

A nova campanha publicitária do Conar é uma verdadeira cusparada na relação entre mercado e bem-estar social 




Nas últimas semanas, duas campanhas publicitárias da AlmapBBDO para o Conar têm ocupado a TV aberta no Brasil. No vídeo "Palhaço", Peteleco, que entretém as crianças num pequeno show particular a céu aberto, é acusado de apologia à violência e ao desperdício de água. Em "Feijoada", um casal de clientes bombardeia o garçom de um restaurante com acusações bisonhas de segregação racial e sexismo por causa da disposição dos alimentos na mesa: "Desculpa, mas eu não entendi por que você separou o arroz e o feijão. Por acaso você é a favor da segregação? E a couve, que é o único alimento feminino do prato? Tem o arroz, o feijão, o torresminho; isso é machismo, sabia?"

Criado na esteira do III Congresso Brasileiro de Propaganda, em 1978, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária é o único veículo que regulamenta a propaganda no país, através de um código ético base abaixo transcrito:

- todo anúncio deve ser honesto e verdadeiro e respeitar as leis do país, 
- deve ser preparado com o devido senso de responsabilidade social, evitando acentuar diferenciações sociais,
- deve ter presente a responsabilidade da cadeia de produção junto ao consumidor, 
- deve respeitar o princípio da leal concorrência e
- deve respeitar a atividade publicitária e não desmerecer a confiança do público nos serviços que a publicidade presta.


O grande problema deste conselho é que a regulamentação do conteúdo publicitário disparado nos meios de comunicação está concentrada basicamente nas mãos da própria publicidade. O "Infância Livre" tem uma relação interesse da sua composição:


Presidente: Gilberto C. Leifert - Diretor da Central Globo de Relações com o Mercado. Foi diretor da MPM Propaganda e da agência de relações governamentais Semprel.

1º Vice-Presidente: Geraldo Alonso Filho - Responsável pela vinda da Publicis ao país, sendo seu Latin America Regional Chairman. Tem larga atuação nas entidades representativas das agências de publicidade, seja na Abap, seja na ABMRA e também no Cenp e ESPM.

2º Vice-Presidente: Eduardo Bernstein - Diretor de Marketing na BRF para Carnes e Margarinas, responsável pelas marcas Sadia e Perdigão. Atuou na Procter & Gamble como Gerente de Marketing de produtos OTC no Brasil, América Latina e Europa. Atuou também na Telefônica do Brasil, como Diretor de Marketing de clientes residenciais. Foi vice-presidente da ABA entre 2008 e 2012 e atualmente faz parte do Conselho dessa associação. Também é membro do Conselho Diretor do Instituto Verificador de Circulação, IVC.

3º Vice-Presidente: Antonio Carlos de Moura - Diretor-executivo Comercial da Folha de S.Paulo, onde trabalha desde 1982, sendo o responsável pela área de comercialização publicitária de todos os jornais do grupo e também do UOL, à frente de uma equipe de 250 pessoas. Moura tem atuação marcante também noCenp, entidade da qual é um dos fundadores.

VP Executivo: Edney G. Narchi - Ocupou a diretoria da Assessoria de Relações Governamentais da Federação do Comércio do Estado de São Paulo.

Diretor de Assuntos Legais: João Luiz Faria Netto - Na Rede Globo, foi assessor da Superintendência Comercial e da Presidência e mais tarde responsável pela área jurídica da emissora. Foi diretor executivo da Associação Nacional de Jornais.

Diretor: Fernando Portela - Em 1989, criou e dirigiu a gerência de Comunicação da Fiat do Brasil, holding do grupo no País, voltando depois para o Grupo Estado, onde se tornou diretor adjunto do Jornal da Tarde, cargo que ocupou até meados de 2005, quando fundou a Loqüi Editora. Lá, cuida da coleção Repórter Especial em parceria com outras editoras.

Diretor: Dorian Taterka - É presidente da Taterka Comunicações e proprietário da TVC – Televisão e Cinema Ltda.

Ainda temos o Conselho Superior, que é formado por:
ABA – Associação Brasileira de Anunciantes
ABERT – Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão
ANER – Associação Nacional de Editores de Revistas
ANJ – Associação Nacional de Jornais
ABAP – Associação Brasileira de Agências de Publicidade
CENTRAL DE OUTDOOR

No conselho de ética da entidade, apenas 19 pessoas representam a sociedade civil, dentre eles, seis jornalistas, três advogados e apenas um médico, enquanto as outras 136 pessoas representam anunciantes ou veículos de comunicação.

33 - Representantes da Associação Brasileira de Anunciantes
16 - Representantes da Associação Brasileira de Agências de Publicidade
17 - Representantes da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão
13 - Representantes da Associação Nacional de Editores de Revistas
16 - Representantes da Associação Nacional de Jornais
3 - Representantes da Central de Outdoor
14 - Representantes das Associações de Propaganda
5 - Televisão por Assinatura
4 - Mídia Interativa
4 - Mídia Cinema
11 - Representantes dos Profissionais de Criação


Dirigido por Estela Renner, o documentário "Criança, a alma do negócio" abordou de maneira enfática a tenebrosa relação entre a publicidade e o público infantil no país. A legislação sobre o tema é bastante vaga e diz que não é permitida nenhuma propaganda que se aproveite da falta de julgamento das crianças para vender. E como é o próprio Conar quem decide se houve a violação ou não, o resultado não poderia ser outro senão um mercado bilionário que tem as crianças como alvo indiscriminado e, certamente, muito lucrativo.

O vídeo de Renner é de 2008, mas os números já eram alarmantes neste período: mp3/mp4/iPod são os presentes que as meninas mais gostariam de ganhar no dia das crianças, seguidos por dinheiro vivo. Entre os meninos a preferência é o videogame e o dinheiro está também em segundo lugar. 48% das crianças das classes A e B têm aparelho celular. 

De acordo com o IBGE, a criança brasileira é a que mais assiste TV no mundo: são, em média, 4 horas, 51 minutos e 19 segundos por dia em frente ao aparelho. Em 2006, a ANVISA alertou que 80% de toda a publicidade de alimentos dirigida às crianças é de alimentos calóricos, com alto teor de açúcar e gordura, além de muito pobres em nutrientes.

Na Suécia, é proibida a publicidade para menores de 12 anos antes das 21 horas. Na Inglaterra, não se pode veicular propaganda de qualquer gênero alimentício com alto teor de gordura, açúcar e sal para menores de 16 anos.  Nos EUA, está proibido o merchandising testemunhal para produtos direcionados ao universo infantil. A Alemanha, por sua vez, proíbe que a programação infantil seja interrompida por anúncios publicitários, algo como também no Canadá. A Dinamarca foi além e, ainda, veta marketing para crianças 5 minutos antes e 5 minutos depois dos programas destinados ao público desta faixa etária. A Holanda não permite qualquer tipo de propaganda para crianças menores de 12 anos.

Atualmente, o mercado infantil movimenta mais de 50 bilhões de reais por ano. Atenção para o semblante eufórico da âncora do Jornal Hoje ao afirmar que o mercado infantil no Brasil não para de crescer. De acordo com dados do IBGE, a progressão é de 14% ao ano.

Se não é capaz de entender os limites do mercado publicitário par crianças, o Conar também não foi para perceber os abusos da campanha da Nova Schin quando fez uma veiculação "bem-humorada" de homens invisíveis que atacam meninas que se trocam dentro de uma cabana. Interpelado por uma série de denúncias, o conselho regulatório recusou o pedido de retirada do comercial. As reclamações? "Excessos", como os ridicularizados nas últimas duas semanas pelo órgão.

O Conar também debochou diante de um recurso do Instituto Alana, que denunciava a veiculação de propaganda do McDonalds durante a exibição do filme infantil "Rio". Em resposta, referiu-se ao Alana como uma bruxa que não gosta de criancinhas. Em 2011, um editorial da Folha de S. Paulo sustentou que a tramitação de um projeto de lei que proíba propaganda infantil que tramita na Câmara “representa uma medida demasiado extrema para conter desvios que a sociedade brasileira já equaciona de modo aceitável”.

Enquanto isso, o Estado dorme. Tanto quanto nos "excessos" das reclamações sobre incentivo de Sheherazade aos justiceiros do Flamengo, vindas daqueles que já se ligaram que, muito embora os veículos de comunicação sejam, de fato, privados, a concessão do seu uso é pública e, portanto, de interesse coletivo. Para o Conar, no entanto, piada com estupro e adultização de crianças ocupam papel harmonioso neste jogo onde o importante é vender. É a danilogentilização da propaganda.

Mais do que desrespeitosa, a campanha do Conar sobre "os excessos" nas denúncias contra os abusos da publicidade simplesmente escancara a sua verdadeira função no mercado, que é o de arrancar os freios do seu crescimento, independentemente de quem pague o preço por isso. Ele que não vai. 

Abraços, 
Murilo

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Raça de Chuteiras

O episódio envolvendo o meia Tinga ontem no Peru está longe de ser um caso isolado no futebol: é mais um no mundo da bola e tem uma pitada de xenofobia em sua reação

por MURILO CLETO



Ontem o Cruzeiro saiu derrotado para o Real Garcilaso em Huancayo, no Peru, em partida válida pela fase de grupos da Taça Libertadores. Resultado mais do que normal, assim como o tratamento recebido pelo meia brasileiro Tinga, que foi obrigado a ouvir a multidão nas arquibancadas imitando o som de um macaco toda vez que pegava na bola. Normal, pois o episódio no Peru não é uma nota isolada no futebol, mesmo nos dias de hoje - em que não somos racistas, certo, Ali Kamel

Em 2005, o ex-jogador do São Paulo Grafite, em jogo também da Libertadores, foi expulso no Morumbi depois de reagir aos insultos racistas do zagueiro argentino Leandro Desábato, do Quilmes. Após diversas referências racistas a atletas negros brasileiros no jogo disputado na Argentina, a própria direção do clube portenho enviou um pedido de desculpas ao São Paulo, que aceitou, mas o episódio voltou a acontecer, em campo, na capital paulista. Negrito de mierda foi o que Desábato disse a Grafite.

De acordo com o Boletim de Ocorrência aberto pelo jogador brasileiro, Desábato ainda tinha mandado Grafite enfiar uma banana no ânus - evidentemente não pronunciado desta maneira. O delegado acatou a denúncia e mandou prender o argentino, que respondeu não pelo crime de racismo, mas por injúria com agravante de discriminação racial. Desta forma, depois de duas noites na cadeia, pagou finança e foi liberado.

O El Clarín manteve por horas uma manchete no ar em que dizia que Desábato havia sido expulso "apenas" por chamar Grafite de "negro". Ora, existe uma diferença razoável entre se referir a alguém como negro por intimidade ou afeto e usar a carga do termo pra uma referência pejorativa. Dizer que um dado biológico - a cor - não consiste num xingamento neste caso é pura desonestidade intelectual. 

Ou negrito de mierda não é racismo? Reforçar a cor do impetrado pela ofensa é muito mais do que lembrá-lo de uma condição que está impressa no seu corpo, mas acionar um mecanismo de memória que lhe inscreve todas as atribuições trazidas pela cor: séculos de escravidão e índices inferiores de escolaridade, desenvolvimento e salários muito abaixo da média branca, por exemplo.

O exercício praticado por Desábato é a materialização das piadas com bananas, com "dia de preto", com "olhe a cor, só podia, né?", entre outros chavões ainda hoje defendidos por uma geração de humoristas tão criativa quanto desafiadora dos paradigmas da sociedade.  

À época, quem diria, Marcelo Tas veio a público pra dizer que o caso era "uma tempestade em copo d'água" e que "acusar o argentino como se o cara fosse um Hitler, pra mim passou do ponto". Rapidamente os jogadores argentinos do Corinthians manifestaram-se com a defesa de que o país não é racista e que o episódio tinha sido motivado, muito provavelmente, pelo clima acalorado da partida.

"Clima acalorado", aliás, tem sido o principal contemporizador de ofensas dentro dos estádios. Como se não bastassem os insultos misóginos ("filho da puta" para jogadores e "biscate" para a bandeirinha) e homofóbicos ("viado"), o racismo, cada vez menos permitido oficialmente no espaço público, tem encontrado um território de exceção onde esbravejar virou também sinônimo de escancarar todo o preconceito recalcado pelo "politicamente correto", como costumam debochar.

Na Rússia, o Zenit São Petersburgo carrega o orgulho de não admitir a contratação de atletas negros no seu elenco. Um grupo de torcedores publicou recentemente uma carta em que explica a sua postura:

“Não somos racistas, mas para nós a ausência de futebolistas negros no plantel do Zenit é uma importante tradição que reforça a identidade do clube. Somos a equipe mais ao norte das grandes cidades europeias e nunca tivemos vínculos com a África, a América Latina, Austrália ou Oceania. Não temos nada contra habitantes destes continentes, mas queremos que joguem no Zenit atletas afinados com a mentalidade e o espírito da equipe”

Apesar de não terem nada contra habitantes de outros continentes, foram os torcedores do Zenit que, em 2011, ofereceram bananas ao jogador Roberto Carlos, ex-Palmeiras e seleção brasileira, antes de partida válida pelo campeonato russo. Em 2008, a torcida chamou os jogadores do Olympique de Marselha de macacos. Na ocasião, a UEFA cogitou excluir o clube da competição continental, mas ficou satisfeita apenas com o pagamento de uma multa. Dick Advocaat, técnico holandês do clube russo, afirmou que não pedia a contratação de jogadores negros para não desagradar a torcida. Até hoje nenhum negro veste a camisa do Zenit.

Essa também não foi a única experiência de Roberto Carlos com o racismo no futebol. Apenas três meses depois dos insultos em São Petersburgo, o lateral esquerdo foi alvo de mais bananas no duelo contra o Krylya Sovetov, ainda pelo campeonato russo. Em 2005, quando estava no Real Madrid, foi a vez da torcida do La Coruña destilar o seu ódio racial contra o brasileiro.

No início do ano passado, o zagueiro ex-Palmeiras Danilo foi condenado a pagar 540 salários mínimos por ter ofendido o zagueiro Manoel, do Atlético-PR, durante partida do Campeonato Brasileiro de 2010. O atleticano foi chamado de "macaco do caralho" depois de uma disputa de bola na área alviverde.

Outro jogador que é alvo constante de xingamentos racistas é o atacante italiano Mario Balotelli. Foram dezenas de casos em que torcedores imitavam macacos ou o vaiavam efusivamente nas arenas. Abandonou o gramado por diversas vezes, mas ainda assim os insultos continuam. Os "Ultras", na Itália, são conhecidos pela forte ligação com o Forza Nuova, agremiação política de extrema direita no país. Mesmo Francisco Totti, um dos maiores ídolos da história da Roma, teve a camisa que jogou aos fãs devolvida pelos ultras da curva sud, descontentes com o seu posicionamento político de centro-esquerda.

Talvez seja a Alemanha o país que mais exponha essa tensão racial nas arquibancadas. O Hansa Rostock, hoje na 3ª divisão da Bundesliga, chegou a ser multado pela Associação Alemã de Futebol depois que torcedores entoaram cânticos racistas direcionados ao atacante Asamoah, do Shalke 04. Em 2011, antes da derrota por 3x1, a equipe de Rostock recebeu os piratas do St. Pauli com uma chuva de bananas no gramado. O caso ganhou certa atenção na imprensa, mas a brasileira preferiu não relacionar o episódio a qualquer manifestação racista ou xenofóbica.

Uma das raras exceções no universo do futebol, o St. Pauli ganhou notoriedade mundial depois que, especialmente a partir dos anos 1980, assumiu a postura progressista e varreu qualquer organização neofascista dos arredores do Millerntor, seu estádio em Hamburgo. No seu estatuto, assume as insígnias antirracista, anti-homofóbica e antinazista. Ao símbolo oficial do clube, uma igreja do bairro nos anos 1910, juntou-se a caveira como emblema desta guinada. Mês passado, outra exceção, os Bukaneros, do Rayo Vallecano, levaram uma faixa para o estádio com os dizeres "minha vagina, minha escolha", em protesto contra a nova lei anti-aborto na Espanha. Na arquibancada das Brigadas Autônomas Livornesas, na Itália, um dos principais cânticos é "quem não pula é fascista".

Já faz algum tempo que abandonei a prática de assistir jogos de futebol em bares. Com os nervos a flor da pele, o espaço cheio de gente e um ódio que espuma, os torcedores revelam com muito mais facilidade quem são de verdade fora dali. Cansei de ouvir "seu preto filho da puta" ou "ô macaco filho duma égua" pra toda e qualquer investida de adversários ou companheiros.

Ainda que o lamentável episódio de ontem envolvendo Tinga no Peru tenha sido lembrado e comentado pela imprensa, é fato que ele passou longe de ser um evento isolado. E mais: a revolta contra o preconceito, neste caso, está vindo acompanhada de outros, como a "surpresa" de uma manifestação racista vir de um país como o Peru. Se tivesse vindo da Europa, talvez tivéssemos aceitado com mais naturalidade. Existem até surtos de ironia com o fato de que peruanos não têm moral para ofender ninguém racialmente, como aquela velha piada infame do nazista negro.

De qualquer forma, os estádios são uma tenebrosa amostra de como o racismo ainda está tão enraizado quanto os hábitos mais comuns do cotidiano. Espaço potencializador das emoções humanas mais recalcadas pelo convívio social civilizado pro além dos seus muros, tornaram-se esse território onde se permite tudo, inclusive voltar ao século XIX.


Abraços, 
Murilo

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Direitos Humanos Para Humanos Direitos

Manual didático de Direitos Humanos para o cidadão de bem




Existe muita desonestidade intelectual sobre o que significam os Direitos Humanos, mas a incompreensão a seu respeito é maior ainda. Talvez nem eu tenha levado tão a sério o que disse Rachel Sheherazade na semana passada antes de pipocarem inúmeras publicações nas redes sociais, categoricamente multiplicadoras da sentença “e aos defensores dos Direitos Humanos, que se apiedaram do marginalzinho preso ao poste, eu lanço uma campanha: faça um favor ao Brasil e adote um bandido”.

Diante da reverberação ainda estridente das declarações de Rachel Sheherazade, fez-se necessária essa atualização, fora de hora – afinal não é quinta-feira –, do Desafinado. Partindo do princípio de que são “cidadãos de bem” alguns dos que estão no endosso desse discurso, escrevo esse manual didático de Direitos Humanos para sepultar de vez alguns argumentos comumente compartilhados entre os muros do Império Zuckerberg. Atenção para os links que sustentam as afirmações:


1) A Justiça no Brasil não funciona!
Em geral, este argumento está baseado na ideia de que, se o sistema judiciário não funciona para condenar os criminosos culpados, devemos nós mesmos tomar a frente, julgar e aplicar pena aos acusados

Se, por um lado, a ineficiência do sistema judiciário brasileiro serve de álibi para a ação de “justiceiros”, por outro revela a existência de uma memória seletiva a seu respeito. Isso porque, neste caso, não é do “bandido comum” que estamos falando. Mas não mesmo, ainda que a medida da justiça seja determinada pelo número de prisões realizadas no país, por mais problemático que seja este critério.

Somente o estado de São Paulo tem 37 presos a mais por dia, a grande maioria por pequenos delitos, como porte de drogas e associação ao tráfico. Esse, aliás, é o principal motivo da superlotação de cadeias femininas. E a criminalidade não tem diminuído por causa disso.

O Brasil tem a 4ª maior população carcerária do mundo. De 1990 pra cá, cresceu 508%, enquanto o aumento populacional do país foi de 31%. Proporcionalmente falando, o número de presos sextuplicou. 

Definitivamente, não é de você que falamos quando dizemos que a justiça não funciona no Brasil. Na última década, a Polícia Militar do RJ matou em 707 "confrontos" com autoria registrada. Apenas 355 viraram inquérito; 19 deram em processo, mas somente 1 em condenação.

Não fosse a determinação da prisão preventiva – que durou 2 anos e 7 meses! – e o julgamento dos demais detentos, Heberson Oliveira não teria contraído HIV depois de ter sido estuprado pelos companheiros de cela numa cadeia do Amazonas. Um depoimento mentiroso o colocou atrás das grades sob a acusação de estupro de uma menina de 9 anos. Finalmente, foi inocentado, mas as sequelas ficaram: além do vírus, uma depressão e o vício em drogas estão na conta da “justiça popular”, até agora paga apenas por Heberson e mais ninguém.


2) E se acontecesse com a sua família?
Aparentemente inofensiva, essa retórica apela para a austeridade familiar que provoca reações violentas em boa parte dos animais, sobretudo os mamíferos

Não foram poucas vezes que esse argumento retórico foi acionado para justificar ações de extermínio ou mesmo tortura de criminosos em potencial: “e se o bandido tivesse matado alguém da sua família? O que você faria com ele?” Quem me conhece um pouco melhor apela mais ainda e redireciona o objeto da pergunta para a minha filha.

A Lívia é o meu bem mais precioso. Não consigo imaginar com qualquer clareza o que faria caso algo de terrível acontecesse com ela, mas não tenho dúvidas de que a revolta seria inevitável, invariavelmente acompanhada de violência. E é exatamente por isso que eu não posso ser o juiz de um caso desses. Não é de mim que estamos falando, das minhas paixões ou convicções, mas de um sistema que administra as paixões e convicções de todo mundo que convive com as minhas.

A base deste argumento não é fundamentalmente desonesta. Apenas ignora o fato de que a função da justiça não é vingar os crimes, mas impedir que novos aconteçam, responsabilizando culpados e resguardando inocentes. Qual o risco de que eu, você ou qualquer outro que tenha perdido um ente querido para o crime acuse o suspeito errado? Todo. Sem o juízo do raciocínio – contaminado pelo ódio –, os julgamentos precipitados não apenas condenam inocentes em potencial como também mantém libertos os verdadeiros culpados.

E se a culpa for comprovada? Comprovada também é a carnificina ocasionada pelo revanchismo. Espancados pela PM depois de vazarem os vídeos da decapitação de colegas de presídio de Pedrinhas, no Maranhão, os presos ordenaram ações no centro de São Luís que vitimaram Ana Clara Santos Sousa, de apenas 6 anos, a irmã, de 1 ano e 5 meses, e a mãe, que estavam num ônibus incinerado como sinal de represália.

3) Direitos Humanos são para humanos direitos
Este argumento ignora a origem dos DH e, sobretudo, o quanto eles existem inclusive para resguardar as individualidades de quem o aciona

No efervescer da experiência revolucionária da França no final do século XVIII, brotou um dos documentos que, anos depois, tornou-se a base do que se convenciona chamar de Direitos Humanos. Logo na queda do poder absolutista de Luís XVI, a Assembleia Legislativa Constituinte elaborou um documento assegurando direitos básicos e fundamentais do ser humano, entre eles a igualdade natural dos sujeitos, a prevalência da lei e da nação diante dos impulsos individuais.

Não demorou muito tempo para que a própria Revolução sepultasse os princípios da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão sob a sede de justiça social. O Terror Jacobino perseguiu a imprensa, colocou sensores nas ruas e condenou milhares à guilhotina.

Das ditaduras cívico-militares da América do Sul ao 3º Reich na Alemanha, a suspensão dos direitos individuais com o álibi da justiça tornou-se uma das primeiras medidas para justificar o terrorismo de estado, cujas vítimas não são necessariamente os “bandidos comuns”, mas muito provavelmente eu e você que levantamos soluções diferentes para um problema que é coletivo e deveria ser, portanto, administrado pelo poder judiciário, amparado, por sua vez, pelo legislativo, que somos nós quem escolhemos. 

No mundo da suspensão das individualidades, o direito a opinião é mais do que um luxo: é um crime. Por isso os Direitos Humanos também nasceram para resguardar direitos fundamentais como, por exemplo, a liberdade de expressão, inclusive para falar tanta besteira sobre eles nas redes sociais.

Neste sentido, a ideia de que os Direitos Humanos servem para proteger bandido trata-se de um delírio coletivo. Isso porque eles também são a base da presunção de inocência, fundamental em qualquer estado de direito dito democrático.

Nas mãos do estado, a simples acusação já foi motivo o suficiente para torturar muita gente num passado nem tão distante quanto a Inquisição. Foi isso que matou Vladimir Herzog depois de uma sessão de espancamentos na sede do DOI-CODI, em São Paulo, durante o período de – veja bem – abertura política no Brasil dos anos 70.

Por isso, são os Direitos Humanos que têm a função de garantir uma defesa digna diante de acusações – quaisquer acusações: as que levaram Herzog para depor, as que infectaram Heberson com o HIV ou mesmo as que dão pistas sólidas sobre roubos e assassinatos. Além de garantir a condenação de um crime, a presunção de inocência impede, por sua vez, a prática de outros diante da pressa por justiça.

4) Bandido bom é bandido morto!
Irmão univitelino do argumento nº 3, este tem apenas a função direcionar o ódio contra o criminoso que interessa

Se a definição imediata de “criminoso” é a de “quem comete crimes” (e bandido é o seu sinônimo mais imediato), seu campo magnético deveria atrair todos aqueles que cometem crimes, mas não é o que acontece. Neste sentido, é criminoso quem colhe atestados falsos de dentista para abater no Imposto de Renda, quem se recusa a pagar o IPTU do imóvel em que vive, quem utiliza placa de outro estado para reduzir o IPVA ou quem usa perfil fake em redes sociais para reforçar denúncias contra outros indivíduos ou instituições. 

Também não vi ninguém pedir a cabeça de Demóstenes Torres – ex-baluarte da ética no Congresso – depois do escândalo de corrupção com Carlinhos Cachoeira. Dentro dessa compreensão, ele também é bandido. Um processo com mais de 50.000 folhas denominado “Mensalão” foi julgado em tempo recorde e determinou a prisão da histórica liderança do PT, apesar de toda descrença popular a respeito do seu desfecho. Ocorrido nada menos que 7 anos antes deste, o mensalão mineiro do PSDB – que serviu de modelo para o segundo! – aguarda julgamento no STF e corre grande risco de prescrever. Não consigo imaginar ninguém exigindo a sentença de morte de Eduardo Azeredo, principal peão do partido, apontado pela procuradoria como diretamente responsável e beneficiado pelo primeiro caso conhecido como "valerioduto".

A minha vontade é a de que todos estes listados acima sejam, portanto, mortos? Não, assim também não deveriam ser aqueles que estão sendo amarrados nos postes pelo Brasil afora, ainda que particularmente eu considere um sonegador de impostos muito mais nocivo ao coletivo do que um batedor de carteiras num calçadão do Flamengo.

Em vários estados dos EUA, a pena de morte é não apenas legal, mas frequentemente aplicada em casos de assassinato, por exemplo. Resolve? Entre os países mais desenvolvidos, figuram como um dos mais violentos.

5) Sheherazade está fazendo valer apenas a sua liberdade de expressão
A linha ignorada que separa a liberdade de expressão da intolerância e incitação ao ódio é a última carta na manga das “pessoas de bem”


Nos tempos da confusão sobre o significado dos Direitos Humanos, a liberdade de expressão acabou se tornando o principal álibi para toda e qualquer forma de manifestação de intolerância no mundo contemporâneo. Nos púlpitos da igreja, é ela que demoniza a homossexualidade. Nas redes sociais, é ela que justifica uma incontrolável agressividade.

Mas existe um erro categórico nesta prerrogativa. O que Sheherazade e seus discípulos estão fazendo está previsto no código penal e se chama "incitação pública à prática de crime", neste caso a violência e a tortura, ignorando qualquer princípio legislativo de correção ao crime. A fala da jornalista do SBT "desrespeitou os direitos humanos garantidos pela Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente ("marginalzinho") e uma violação explícita do Código Brasileiro de Telecomunicações que determina que o serviço de rádio difusão não pode ser usado para humilhar pessoas e expô-las a condições degradantes, 'nem que seus fins sejam jornalísticos'".

A máscara democrática deste discurso de "liberdade de expressão" cai quando os efeitos colaterais desta e de tantas outras declarações neste mesmo sentido têm se multiplicado no país. No Rio de Janeiro, local da barbárie aplaudida por Sheherazade, Francisco do Nascimento foi amarrado a um poste por duas horas enquanto uma multidão se acotovelava em sua volta. Seu crime? É preto, pobre e deficiente mental. De nada adiantou que alguns tentassem libertá-lo. Dois homens permaneceram de guarda para impedir qualquer aproximação. 

Em setembro de 2010, em São Gonçalo-RJ, o caseiro Marco Antônio Corrêa Vicente foi espancado até a morte por um grupo de pessoas que o confundiu com um ladrão de celular. Nesta semana, um grupo se vangloriou por agredir, amarrar e despir um homem acusado de tentar roubar uma moto. A jornalista e professora Cilene Victor da Silva tem sido frequentemente ameaçada de morte depois de criticar publicamente, amparada em lei, a postura de Sheherazade. 


Por sorte que os Direitos Humanos estão aqui também para impedir que Rachel Sheherazade e seus "justiceiros" espalhados pelo país sejam amarrados em postes por aí. Já pensou se o argumento nº 4 fosse aplicado agora? Justiceiros e seus defensores estão contra a lei. Isso não deles criminosos/bandidos também? Não adianta correr pra debaixo da saia da Constituição apenas quando convém, e da maneira que convém.


Se ainda assim as sentenças intolerantes da jornalista do SBT e dos cientistas sociais do Facebook mantiverem-se inflexíveis, pode ser que não sejam tão "cidadãos de bem" assim.

Nota do autor: "Cidadão de Bem" (Good Citizen) era o nome da revista mantida pela Ku Klux Klan, organização racista norte-americana que prega o extermínio dos negros desde o fim da Guerra de Secessão, como revanche pelo fim da escravidão legal no país. Sinal dos tempos.



Abraços, 
Murilo

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

A Sheherazadezação da Justiça

Os comentários de Rachel Sheherazade sobre o adolescente amarrado ao poste por "justiceiros" não comandaram as execuções destes meninos caídos sobre as escadarias de mais uma favela carioca. Nem precisava. Sua fala tem apenas uma função: autorizá-las 



Reproduzo um trecho do artigo "Olho Por Olho", publicado há pouco menos de 2 anos aqui mesmo no Desafinado, e que talvez tenha algo a acrescentar sobre a mais nova peça produzida pela jornalista Rachel Sheherazade.


A praça de Greve estava lotada em Paris. Era 2 de março de 1757, e o protagonista do espetáculo chegava vagarosamente desde a porta da Igreja, vestido apenas com uma fina camisola. Diante dos olhos da multidão, sofria duras chagas como castigo pelo crime de parricídio. Considerado o pai de todos, o rei da França Luis XV fora atacado por Robert-François Damiens, que segurava agora a mesma faca com que tentara matar o mandatário máximo do absolutismo francês em pleno vigor a pouco menos de três décadas do seu colapso. Puni-lo era questão de honra para o rei e - mais - exemplo para os demais súditos.


Além da humilhação submetida graças à exposição e os constantes xingamentos proferidos contra si, Damiens também recebeu um sem-número de açoites que pouco a pouco rasgaram cada parte do seu corpo. Braços, pernas e mamilos decepados recebiam doses cavalares de óleo fervente, chumbo derretido e piche, que eram derramados sobre cada uma das feridas.

Já no patíbulo erguido, diante da multidão, Damiens partiu para uma das cenas finais do seu auto-de-fé: o esquartejamento. 4 cavalos foram colocados à disposição, amarrados a cada um dos membros do seu já debilitado corpo. A partida foi dada e, muito embora fossem fortes, os cavalos não foram capazes de arrancar-lhe as juntas. Depois de algumas tentativas, em meio aos gritos de horror proferidos pelo criminoso, houve nova tentativa, agora com 6 cavalos, também sem sucesso.


Para concluir o destino da condenação, os carrascos decidiram eliminar o problema: cortaram todos os nervos das pernas que impediam a secção da carne. Assim, finalmente, os cavalos partiram mais uma vez e Damiens teve os dois braços e as duas pernas brutalmente arrancados do corpo ainda relutantemente vivo. Lançados ao fogo, os pedaços de carne e o tronco queimaram por cerca de 4 horas.

Algum tempo passou desde a condenação de Damiens, e a grande verdade é que, pelo menos legalmente, a punição da delinquência tem se tornado cada vez menos vingança e mais justiça. Ainda que as prisões não tenham produzido aquilo que Foucault chamou de "corpos dóceis", é fato que a racionalização das penas deveria ter reduzido a violência não apenas marginal, mas também do Estado. Deveria, pois no frigir dos ovos a violência do Estado tem sido constantemente justificada pela marginal, e a consequência disso é o caos urbano.

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É verdade que quase tudo já tenha sido dito pela jornalista Rachel Sheherazade, hoje no SBT. Mas é também verdade que pouco tem se reforçado o quanto que, mais do que lançadora de tendências, ela se tornou a personificação do pensamento reacionário que está presente ali no consultório odontológico, na farmácia, na escola de educação infantil ou nas feiras ao ar livre.

Sheherazade é o recalque denunciado por Freud mandado às favas pelas redes sociais sob a máscara do anonimato. Não é necessária muita pesquisa para que algum de seus cavaleiros se manifestem com o discurso de que ela tem personalidade. Não tem. Parafraseando Ricardo Sica sobre Lobão, Sheherazade é um comentário do G1 que fala. Assumiu isso pra si desde o primeiro minuto que apareceu na TV e não escondeu nunca mais.

Agora, a jornalista do SBT está na boca das redes depois ter falado anteontem sobre o "marginalzinho amarrado ao poste" (sic) no Rio de Janeiro. Debochou quando disse que [ele] "era tão inocente que, em vez de prestar queixa contra os seus agressores, ele preferiu fugir, antes que ele mesmo acabasse preso. É que a ficha do sujeito está mais suja do que pau de galinheiro".

O comentário fazia referência ao adolescente de 15 anos, negro e pobre que perambula pelas ruas do Flamengo praticando pequenos furtos, preso a um poste com as travas de uma bicicleta, nu, na noite da última sexta-feira. Sob o decreto de Sheherazade, "a atitude dos vingadores é até compreensível", afinal, o que resta aos "cidadãos de bem"? "Se defender, é claro! O contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite. E aos defensores dos Direitos Humanos, que se apiedaram do marginalzinho preso ao poste, eu lanço uma campanha: faça um favor ao Brasil, adote um bandido".


Sheherazade tem razão quando diz que o Brasil tem um dos maiores índices de arquivamento de inquéritos policiais de assassinatos do mundo. Olvida desonestamente apenas que estes números corroboram, na verdade, com esse revanchismo que vitima ainda mais adolescentes, pretos e pobres do Brasil. Somente polícia de SP, por exemplo, mata mais do que a de todos os Estados Unidos. Metade dos PMs presos de São Paulo responde por homicídio. A do Rio de Janeiro executa um a cada 16 mil habitantes, mais do que a média nacional de assassinatos. Entre 2005 e 2007, no Rio de Janeiro, dos 707 casos de "auto de resistência" - como se costuma chamar o "confronto" contra a polícia -, somente 1 PM foi condenado.

77% dos jovens que morreram em 2010 no RJ eram negros, o que representa muito mais do que o dobro de vítimas brancas. Ao contrário do que se sustenta, as UPPs não vieram exatamente para trazer paz às comunidades. Ainda que o número de mortos tenha diminuído depois da instalação das unidades, os desaparecidos - como Amarildo - aumentam progressivamente. Existem denúncias contra 25 das 33 delas espalhadas pelo Rio.

Na cidade de São Paulo, o homicídio é a maior causa de morte não natural entre negros. São também negros 2 a cada 3 mortos pela polícia no município. Uma proporção de 2,3 assassinados para cada 100 mil habitantes, enquanto o índice é de 0,6 entre brancos. O perfil do assassinado é marcado pela cor, pelo sexo, pela idade e também pela região: na esmagadora maioria, eles são jovens, homens e moradores da periferia, tendo a arma de fogo como principal algoz.

Nos comentários da notícia veiculada pelo G1, que desnuda essas estatísticas, desbravadas pela ONG "Sou da Paz", a sentença era clara: "mais vale um negro morto, que nas prisão gerando custos exorbitantes"; "Depois é racismo quando se diz que negro é bandido". Famosos pela brutalidade, desta vez os comentários foram apagados e essa opção desativada no link.

A imagem que ilustra a postagem de hoje é do perfil do BOPE no Facebook. A página tem mais de 69.000 curtidas e a foto em questão quase 3.000 compartilhamentos com um texto que atribui explica a ação como retaliamento pela morte de dois soldados do grupo. A lista de comentários é simplesmente nefasta. "Não gostou, oculta. É essa porra mesmo".

Foram 6 "suspeitos" também mortos na operação da PM no Morro do Juramento, no Rio de Janeiro, na manhã da última terça-feira. A perícia já se manifestou dizendo que existem fortes indícios de execução.

Por denunciar a gravidade das declarações de Sheherazade, a professora Cilene Victor da Silva tem recebido diversas ameaças de morte, inclusive por telefone, com referências extremamente pessoais a sua rotina de trabalho. Pelo próprio Facebook, a apresentadora pediu que seus seguidores denunciassem Cilene por incitação à violência. Seria cômico não fosse tão trágico.

Os comentários de Rachel Sheherazade sobre o adolescente amarrado ao poste por "justiceiros" não comandaram as execuções destes meninos caídos sobre as escadarias de mais uma favela carioca. Nem precisava. Sua fala tem apenas uma função: autorizá-las.



Abraços,
Murilo