quinta-feira, 27 de março de 2014

"Ilegal": Migrações e Identidades






Obra de Olivier Masset-Depasse, o longa-metragem “Ilegal” foi selecionado na Quinzena dos Diretores em Cannes em 2010, ano de lançamento na Europa. O roteiro conta a história da imigrante russa Tania, que vive na Bélgica com o filho pequeno. Depois de ter o pedido de residência permanente recusado pelo governo, colocou o menino para dormir, tomou algumas doses de vodca e queimou as pontas de todos os dedos para permanecer ilegalmente no país.

Oito anos depois, Tania é abordada por policiais numa esquina pacata que divide para sempre sua trajetória. Instigado pela mãe, seu filho consegue fugir, correndo como um raio enquanto as autoridades controlam a russa. Como não revela o nome, nem a origem, nem absolutamente nada, Tania é mantida sob detenção enquanto decidem o futuro por ela entre uma série de sessões de tortura física e psicológica.

Mais atual do que nunca, “Ilegal” é um retrato de tirar o fôlego da sociedade contemporânea globalizada. Sonho projetado desde pelo menos o fim da Segunda Guerra Mundial, a União Europeia tem o seu destino em cheque desde a eclosão e os desdobramentos da grave crise econômica que assola o mundo desde 2007. A partir da falência do Lehman Brothers e da onda de desemprego causada num efeito dominó, as políticas de fronteira entre Europa e demais continentes, e entre os próprios países europeus, têm passado por importantes transformações sintomáticas.

Já em 1985, Alemanha, França e Luxemburgo lançaram o primeiro acordo de Schengen, que previa livre circulação entre os países signatários. 12 anos depois, a assinatura do tratado passou a ser condição para a adesão à União Europeia. Até junho de 2011, 25 países haviam assinado o tratado, incluindo alguns fora da zona do Europa e da própria UE. 

Já em maio de 2011, diante da intensificação dos movimentos migratórios de civis refugiados pelas revoltas e guerras civis no mundo árabe, o ministro da integração dinamarquês, Soren Pind, pediu a revisão do Tratado de Schengen e o retorno do controle alfandegário entre as fronteiras nacionais. Desde a crise do mercado financeiro que se desenrola desde 2007 e agora, depois das revoltas no norte da África e no Oriente Médio, os dinamarqueses estão incomodados com a presença dos imigrantes, especialmente os árabes. 

De acordo com Pind, “[...] o maior desafio é aceitar que nem todo mundo é igual a nossa sociedade. Nós somos uma tribo há mais de dois mil anos. Nós viemos dos vikings e gostamos muito do nosso jeito de viver. [...] É verdade que alguns grupos imigrantes estão mais representados nas estatísticas de crimes.”

A pressão surtiu efeito, e no mês seguinte a União Europeia aprovou em tempo recorde a revisão temporária do acordo de livre circulação. O bloco liderado por França e Itália – e apoiado por Bélgica, Holanda e, claro, Dinamarca – não poupou esforços ao convencer o continente de que os cerca de 750 mil refugiados em poucas semanas de conflito na Líbia exerceriam uma pressão econômica insustentável aos coligados.

Ao queimar as pontas dos dedos em “Ilegal”, Tania mais do que se autoflagela numa atitude de desespero. Escolhe, com isso, apagar as marcas de suas impressões digitais e, ainda, sua identidade como cidadã. Sem condições de manter emprego formal, residência ou qualquer registro em nome próprio, torna-se apenas mais um corpo indigente na multidão de rostos sem memória autorizada. Durante nada menos que 8 anos, prefere viver nesta condição do que voltar às raízes na Rússia.

Isso, talvez em grande porque o imigrante vive uma encruzilha de identidade particularmente sensível à normalidade do pertencimento territorial: não é cidadão da sua nova casa, pois tem origem noutra. Tampouco o é de sua antiga morada, pois o lapso entre a partida e a volta o transformou em alguém que não já não é desde muito. Insuficiente para o novo e demais para o velho, não obstante o imigrante tem lugar reservado justamente naquilo que denominamos “não-lugares” que, proliferados especialmente desde a década de 1980, constituem espaços efêmeros de convivência, como campos de refugiados, aeroportos e rodoviárias, onde sua identidade é tão visível quanto as impressões digitais de Tania e dos milhares de anônimos que abriram mão do próprio passado na busca por um futuro melhor no paraíso.

quinta-feira, 20 de março de 2014

O ITBI em Itararé



Evidentemente passou batido, mas a Prefeitura Municipal de Itararé lançou nota oficial anteontem sobre o projeto de lei encaminhado pelo executivo ao legislativo para a revisão do cálculo do Imposto sobre a Transição de Bens Imóveis. Tudo isso depois de um escândalo causado por uma das mais desonestas capas do já famoso periódico por essas peripécias 'Folha do Vale' e dos discursos inflamados dos vereadores de oposição. Mais do que um direito das prefeituras, a cobrança correta do IPTU e do ITBI é uma obrigação, pois ela é a maior fonte de receita própria dos municípios. Reproduzo na íntegra o documento que encerra o chorume das redes sociais e jornais a respeito do tema. 

A Prefeitura Municipal de Itararé vem, através desta, respeitosamente, esclarecer à população itarareense acerca de Projeto de Lei Complementar, que teve por finalidade modificar a redação de três artigos do Código Tributário Municipal-CTM. De acordo com a Constituição, ao Município compete a cobrança de três impostos: o IPTU (imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana), o ITBI (imposto sobre a transmissão de bens imóveis) e o ISSQN (imposto sobre serviços de qualquer natureza).

O Projeto de Lei Municipal encaminhado pela Prefeitura Municipal, à Câmara de Vereadores de Itararé, buscava corrigir um equívoco que remonta há longa data, no que se refere ao modo de calcular o ITBI. Qual seria este equívoco? Hoje, quando é realizada uma transação imobiliária, como por exemplo, a compra e venda de um terreno, no valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais), o ITBI é calculado com base em um valor fictício ou virtual, e não com base no valor real do bem, o que causa grandes prejuízos para os cofres públicos municipais. O que observamos, portanto, é uma verdadeira fraude!

Explicamos: os impostos são tributos formados por uma BASE DE CÁLCULO, e por uma ALÍQUOTA (porcentagem), através dos quais é possível a obtenção do VALOR do tributo. O ITBI é devido em todos os casos em que ocorre o fato gerador, o que acontece com a transmissão onerosa da propriedade imóvel. O sujeito passivo, aquele que paga o imposto, é o adquirente ou cessionário de bem imóvel ou do direito a ele relativo, ou seja, aquele que compra bem imóvel ou adquire direito relacionado ao referido bem (por exemplo: usufruto, dação em pagamento, permuta). Assim, no caso do ITBI, o valor do tributo é obtido através de uma simples operação aritmética: obtém-se o valor da BASE DE CÁLCULO, e multiplica-se tal valor por uma ALÍQUOTA em percentual.

Portanto, a BASE DE CÁLCULO do ITBI é o VALOR VENAL do imóvel, entendido como o VALOR EFETIVAMENTE PRATICADO no MERCADO. De acordo com o tributarista Eduardo Sabbag, valor venal é considerado o preço que o imóvel alcançaria se colocado à venda em condições normais do mercado imobiliário (Manual de Direito Tributário, 5.ª edição, 2013, página 1.008). Atualmente, o Código Tributário de Itararé (CTM) prevê que a BASE DE CÁLCULO do ITBI será apurada com base no valor venal dos bens imóveis, obtido com base na Planta Genérica de Valores do Município.

Em relação ao IPTU, as legislações municipais relativas ao imposto costumam trazer em seu texto que o valor do m2 (metro quadrado) dos terrenos e das glebas urbanizáveis deverão ser fixados levando-se em conta o índice médio de valorizações e os preços relativos às últimas transações imobiliárias. A obediência a estes parâmetros remete para a elaboração de PLANTA GENÉRICA DE VALORES, contendo os diferentes preços dos terrenos praticados na área urbana, que deverá conter a relação de todas as ruas com suas respectivas faces de quadra e o seu valor por metro quadrado de terreno ou gleba utilizável. Desta forma, existe uma tabela, com os valores venais de todos os imóveis sediados em Itararé/SP, conforme a localização de cada um, utilizada tanto para a apuração do valor do IPTU, quanto para a apuração do ITBI.

Porém, em Itararé, até mesmo o mais desatento dos observadores pode concluir que a PLANTA GENÉRICA DE VALORES encontra-se desatualizada, ou seja, o valor venal dos imóveis, tanto para efeitos de cobrança do IPTU, quanto para a arrecadação do ITBI, encontra-se demasiadamente defasado, trazendo valores afastados da realidade; o que equivale a dizer que o Município de Itararé está deixando de arrecadar receita para os cofres públicos, fato este que vem causando, já há longa data, prejuízos para nossa cidade.

Em diversos outros Municípios, atentos para esta preocupante realidade, foi alterado o modo de se chegar ao valor venal do imóvel, para fins de arrecadação de ITBI, abandonando o cálculo com base na PLANTA GENÉRICA DE VALORES, utilizada também nos casos relacionados ao IPTU, e adotando procedimento adequado, que permite à Fazenda Municipal arrecadar o ITBI pelo VALOR REAL da transação imobiliária.

O Projeto de Lei pretendia que o valor venal fosse determinado através de AVALIAÇÃO DO IMÓVEL, procedida por profissional devidamente habilitado, conforme parâmetros estabelecidos pela ABNT-Associação Brasileira de Normas Técnicas.

Assim, nos casos em que houver transações imobiliárias, deixaremos de observar situações absurdas, como a descrita no exemplo exposto linhas acima: a compra e venda de um terreno, no valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais). Com base no atual sistema de apuração do valor venal do ITBI, deveria ser observado o valor venal do imóvel, conforme a planta genérica de valores, por exemplo, R$ 10.000,00. O valor do ITBI seria: BASE DE CÁLCULO (valor venal) multiplicado pela ALÍQUOTA de 2% (artigo 67 do CTM), isto é, R$ 10.000,00 X 2% = R$ 200,00 (duzentos reais).

Todavia, o valor real da compra e venda, foi de R$ 100.000,00 (cem mil reais), e o tributo REALMENTE devido seria de R$ 2.000,00 (dois mil reais). Portanto, em apenas uma transação imobiliária, dentre as centenas que ocorrem durante o ano, o Município deixaria de arrecadar R$ 1.800,00 (um mil e oitocentos reais). É preciso salientar, ainda, que ao sujeito passivo do ITBI, aquele que paga o imposto, deverá ser assegurada a contestação, a impugnação contra o valor obtido pelo avaliador de imóveis a serviço da Prefeitura Municipal. Isto porque uma vez apurado o valor do tributo, é promovido um procedimento administrativo denominado lançamento tributário, após o qual é permitida ao sujeito passivo, garantidos o contraditório e a ampla defesa, a possibilidade de questionamentos, seja perante a própria Administração Pública, seja diante do Poder Judiciário.

O entendimento acima demonstrado é consagrado no Superior Tribunal de Justiça – STJ, em que se decidiu que “É cediço na doutrina majoritária e na jurisprudência dessa Corte que a base de cálculo do ITBI é o valor real da venda do imóvel ou de mercado” (REsp 261.166/SP, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 12/09/2000, DJ 06/11/2000, p. 192); e (REsp 210.620/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/05/2005, DJ 27/06/2005, p.308).

Observa-se, portanto, que o Projeto de Lei encaminhado pela Prefeitura Municipal de Itararé, à Câmara Municipal, foi ao encontro dos interesses da população, que não pode fechar os olhos para simulações fraudulentas, em prejuízo dos cofres públicos. Deve ser adotado procedimento criterioso, que permitirá ao fisco avaliar o VALOR REAL dos negócios relacionados a bens imóveis, deixando de lado valores virtuais e fictícios, que favorecem apenas e tão somente aos compradores de imóveis e prejudicam a cidade de Itararé com seus quase 50 mil habitantes.

Não há que se falar em “valores muito altos”, e sim em valores reais, verdadeiros. Não há que se falar, ainda, em surgimento de “mercado imobiliário paralelo”. Ora, de acordo com a lei brasileira, é impossível a existência de tal mercado, já que, em regra, somente se reconhecem como válidas, existentes e eficazes as transações imobiliárias devidamente lavradas em escritura pública, posteriormente registradas no cartório de registro de imóveis, ressalvadas poucas exceções. Não é possível, sob o pretexto de favorecer eventuais compradores de bens imóveis, poucos e abastados contribuintes, admitir a continuidade de simulações e fraudes ao fisco, em detrimento do erário municipal, e da maioria humilde da população itarareense, que depende dos serviços públicos custeados pelas receitas advindas dos impostos municipais.

Itararé, 18 de março de 2014.
PREFEITURA MUNICIPAL DE ITARARÉ

Abraços,
Murilo

quinta-feira, 13 de março de 2014

A Invenção da Mulher

Como o discurso ocidental forjou uma identidade para o "segundo sexo" e de que maneira ele responde ao chorume sobre a ausência de um dia do homem

por MURILO CLETO



Entre rosas e pedradas, mais um 8 de março se passou no último sábado e, com ele, também uma série de incompreensões sobre o significado da data. Dentre os apontamentos, a indignação pela inexistência do dia do homem ou, pior, a comercialização ou fofurização do dia da mulher, reduzido a homenagens românticas e declarações paternalistas.

Apesar de ser mentirosa a versão do episódio de uma fábrica queimada com mulheres dentro depois de uma greve trabalhista, o Dia Internacional da Mulher é, acima de tudo, um dia de luta. E este artigo conta por quê.

Entre os idos de 1970 e 1980, o “filósofo pirotécnico” Michel Foucault revolucionou os limites do corpo escancarando sua provisoriedade e finitude. Assim como o medo, o desejo, a morte, a vida, o corpo humano é também uma construção social, tecida por uma série de relações de poder que incessantemente refazem o seu significado.

Desta forma, é impossível compreender a mulher sem uma reflexão sobre a sua trajetória na relação com o homem ao longo dos séculos na tradição ocidental. De maneira geral, as representações masculinas a respeito da mulher transitam da veneração ao ódio, passando pelo acionamento de diversas referências ideais e espelho de comportamento. 

Até o século XX, foi consensual a ideia do desapego da mulher à lógica. De acordo com Freud, “na sexualidade feminina, tudo é obscuro e bastante difícil de estudar de maneira analítica”. Na inveja do pênis, aliás, estava o segredo do estranhamento entre os sexos. Para Simone de Beauvoir, “o sexo feminino é misterioso para a própria mulher, oculto, atormentado [...]. É em grande parte porque a mulher não se reconhece nele que não reconhece como seus os seus desejos”. Karen Horney descreve-a como “santuário do estranho”.

Não é por acaso, portanto, que religiões fundadoras da experiência civilizatória no Ocidente tenham mulheres com o dom da profecia como representação das suas sensibilidades. Na Grécia Antiga, os oráculos eram mulheres. É também feminina boa parte das divindades associadas a fins de ciclos, representados através da destruição do universo, por exemplo. 

Por outro lado, atribuiu-se ao homem o papel racional das relações humanas. Neste sentido, cabe a justaposição da natureza como elemento materno e da história como elemento paterno. Tanto que até hoje vigora um imaginário social que atribui às mães certo papel regular, portanto natural, na história: “mãe é tudo igual, só muda de endereço”. Já os pais são aqueles considerados condicionados à cultura, propensos à evolução e ao progresso.

Na tradição hebraica, o surgimento da mulher está atrelado ao preenchimento do vazio causado pela solidão de Adão, único habitante humano do Jardim do Éden. O “segundo sexo” ocupa lugar nos 10 mandamentos, mas ao lado de outros objetos de propriedade reconhecível: “Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo” (10º Mandamento: Êxodo, cap. 20, vers. 17)

Com raras exceções, como em alguns aspectos no Egito, à mulher foi negado o direito à propriedade, à personalidade jurídica e à cidadania. Em Atenas, o gineceu era seu espaço obrigatório de habitação, onde deveria executar os ofícios considerados próprios do gênero.

Na Idade Média, o imaginário teocêntrico concentrou na mulher boa parte dos seus temores em relação ao pecado e suas implicações. Descende de Santo Agostinho, ainda no século IV, a ideia de “pecado original”, reproduzida exaustivamente pela literatura religiosa medieval. Durante todo o período, a compreensão da mulher esteve restrita quase que exclusivamente ao papel exercido por Eva no Éden, o de fundadora do pecado no mundo.

É particularmente simbólico o fato de que Eva, de acordo com a tradição, tenha se sentido tentada a comer da árvore do conhecimento. Primeiro porque desafia diretamente uma ordem monoteísta que atribui somente a Deus o conhecimento das coisas. Segundo porque reforça a dificuldade natural de submissão da mulher à razão.

Para a mulher, disse o historiador Tertuliano: “Tu deverias usar sempre o luto [...] a fim de compensar a culpa de ter trazido a perdição ao gênero humano. Mulher, tu és a porta do diabo. Foste tu que tocaste a árvore de Satã e que, em primeiro lugar, violaste a lei divina”.

Da abertura da caixa de pandora grega ao fruto proibido comido no paraíso, uma convergência: a culpa é sempre da mulher.

Verdade seja dita, o Cristianismo incipiente deu sinais de mudança na histórica divisão hierárquica entre homem e mulher, desfeita pela redenção do filho de Deus. Na Epístola aos Gálatas, o apóstolo Paulo escreve que “não há homem nem mulher: pois todos vós não sois senão um em Cristo Jesus”.

O próprio Paulo, no entanto, refaz o raciocínio diversas vezes, revogando a própria máxima: “Não foi o homem, evidentemente, que foi criado para a mulher, mas a mulher para o homem” (I Coríntios XI,9); “Que as mulheres sejam submissas a seu marido como ao Senhor; com efeito, o marido é chefe de sua mulher, como Cristo é chefe da Igreja, ele, o Salvador do Corpo. Ora, a Igreja se submete a Cristo; as mulheres devem portanto, e da mesma maneira, submeter-se, em tudo, aos seus maridos” (Efésios v, 22-24); “Que as mulheres se calem nas assembleias, pois não lhes é permitido tomar a palavra; que se mantenham na submissão como a própria lei o diz” (I Coríntios XIV, 34-35); “Eu não permito à mulher ensinar e governar o homem” (I Timóteo II, 11-14).

No transcorrer da Idade Média, em especial a partir do século X, o processo de diabolização da mulher tornou-se ainda mais radical, com o reforço dos clérigos em exercício. Mais do que nunca, sua existência esteve vinculada ao perigo dos pecados da carne e suas tentações.

Para Odon, abade de Cluny do século X, “a beleza física não vai além da pele. Se os homens vissem o que está sob a pele, a visão das mulheres lhes viraria o estômago. Quando nem sequer podemos tocar com a ponta do dedo um cuspe ou esterco, como podemos desejar abraçar esse saco de excremento?” Em 1185, André Le Chapelain escreveu que “a mulher é um verdadeiro diabo, uma inimiga da paz, uma fonte de impaciência, uma ocasião de disputas das quais o homem deve manter-se afastado se quer gozar a tranquilidade”.

Tornado santo pela Igreja, Bernardino de Siena tem um manual de atribuição de funções à mulher na casa: “É preciso varrer a casa? – Sim. – Sim. Faze-a varrê-la. É preciso lavar de novo as tigelas? Faze-a lavá-las. É preciso peneirar? Faze-a peneirar. É preciso lavar a roupa? Faze-a lavá-la em casa. – Mas há a criada! – Que haja a criada. Deixa fazer a ela (a esposa), não por necessidade de que seja ela que o faça, mas para dar-lhe exercício. Faze-a vigiar as crianças, lavar os cueiros e tudo. Se tu não a habituas a fazer tudo, ela se tornará um bom pedacinho de carne. Não lhe deixes comodidades, eu te digo. Enquanto a mantiveres atenta, ela não permanecerá à janela, e não lhe passará pela cabeça ora uma coisa, ora outra”.

Já em 1512, Thomas Murner descreveu a mulher como “diabo doméstico”. Segundo ele, o homem não pode hesitar em aplicar-lhe surras, afinal – usa a retórica – "não se diz que ela tem 7 vidas?" Também no século XVI, Menót refletiu: “Para se fazer ver pelo mundo a mulher que não se contenta com trajes que convém a seu estado terá toda espécie de vãos ornamentos: grandes mangas, a cabeça ataviada, o peito descoberto até o ventre com um fichu leve, através do qual se pode ver o que não deveria ser visto por ninguém. É em tal libertinagem de trajes que ela passa, o livro de horas sob o braço, diante de uma casa onde há uma dezena de homens que a olham com um olho de cobiça. Pois bem, não há um só desses homens que por causa dela não caia no pecado mortal” 

Para quem entende que a razão do século XVIII trouxe certa liberdade, igualdade e fraternidade também entre gêneros, os versos de Grignon de Montfort são bem explícitos:

Mulheres belas, rostos formosos
Como vossos encantos são cruéis!
Como vossas belezas infiéis
Fazem parecer criminosos!
Pagareis por essas almas
Que fizestes pecar
Que vossas práticas infames
Fizeram afinal cambalear
Enquanto estiver na terra, 
Ídolos de vaidade, 
Eu vos declaro a guerra, 
Armado da verdade


Mais de meio milênio depois do fim da chamada “Idade das Trevas”, como a Modernidade convencionou apelidar a ignorância da Era Medieval, o século XXI ainda reserva resquícios de uma permanência aparentemente indissolúvel. Afinal, a culpa continua sendo da mulher que insinuou demais antes de ser estuprada. 

Até quando a revolta diante da violência contra a mulher está presente, costuma vir acompanhada de sentenças misóginas, como a sugestão de punir os agressores sentenciando “suas mulheres” a outras barbáries como vingança. Em 2007, o Conselho Tutelar denunciou caso de uma adolescente de 15 anos que mantinha relações sexuais para sobreviver numa cela com 20 homens, diante da falta de acomodações para mulheres em Abaetetuba. Nos comentários, o superintendente responsável pelo caso foi massacrado com as seguintes sugestões:



Note-se que algumas das sugestões vêm justamente de outras mulheres. E talvez seja este o maior trunfo do machismo na contemporaneidade, dotado de um histórico controle a seu favor: atribuir à própria vítima a condição de culpada.

Fizéssemos a inversão destes papéis, não hoje, nem pelos últimos 10 anos, mas por pelo menos 10 milênios de civilização. Aí quem sabe teríamos um digníssimo Dia Internacional do Homem.


Abraços,
Murilo

quinta-feira, 6 de março de 2014

Joaquim Barbosa Para a Direita

Por que o Presidente do Supremo Tribunal Federal tornou-se o queridinho da onda reacionária no país


Joaquim Barbosa nasceu em Paracatu, no interior de Minas Gerais. Filho de pedreiro, estudou em Colégio Estadual enquanto ajudava o pai a fazer tijolos e entregar lenha no caminhão da família. Com menos de 20 anos, ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Uma década depois, já era procurador do Ministério Público Federal. Assumiu a chefia da consultoria do Ministério da Saúde em 1985. Voltou à Procuradoria em 1988. No limiar do século XX, lecionou na Universidade da Califórnia até que, enfim, foi nomeado pelo ex-presidente Lula para o Supremo Tribunal Federal, de onde não saiu mais desde então.

Nas cadeiras do Supremo, já nos primeiros anos de exercício, Barbosa bateu boca diversas vezes com os ministros Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Eros Grau. No ano passado, disse que no Brasil os partidos políticos são de mentirinha e que, no fundo, o Congresso está nas mãos do governo. Em 2006, foi ele o escolhido relator do maior julgamento político da história do país, o Mensalão. No ano seguinte, o inquérito virou ação e o ministro adentrou o seleto universo das - isso mesmo - celebridades.

Na quinta-feira passada, o Mensalão voltou às manchetes das principais redações e redes sociais não apenas por causa do resultado de mais um julgamento, mas pela reação de Barbosa aos votos dos seus colegas de STF. O vídeo do seu "desabafo" correu rapidamente o país e ele reforçou a posição de herói nacional, assumida desde pelo menos 2011, quando já não podia mais esconder a sede pela condenação dos envolvidos no esquema protagonizado pela alta cúpula do PT, dirigentes de bancos e parlamentares.

Tudo começou em 2011 mesmo, quando Lewandowski esteve na capa da Folha de S. Paulo pra dizer que as penas do mensalão prescreveriam.

Réus do mensalão terão as penas prescritas antes que o julgamento esteja concluído. O escândalo é de 2005 e não há ainda prazo para finalizar o processo no Supremo Tribunal Federal, diz o ministro Ricardo Lewandowski. O mensalão tem 38 réus e está à espera do voto do ministro-relator, Joaquim Barbosa. Em seguida, Lewandowski terá incumbência de revisar o processo. Só então poderá ser marcado um julgamento pelo plenário do STF.
‘Terei que fazer um voto paralelo ao voto do ministro Joaquim. São mais de 130 volumes. São mais de 600 páginas de depoimentos. Quando eu receber o processo eu vou começar do zero. Tenho que ler volume por volume porque não posso condenar um cidadão sem ler as provas’, disse Lewandowski em entrevista à Folha e ao UOL (…)
Quando um réu é primário, a pena imputada pode ser menor em relação a um criminoso com ficha suja. Entre os crimes que podem caducar, disse Lewandowski, está o de formação de quadrilha (…)
Como o caso está em curso, não é possível saber quais os crimes imputados que irão prescrever. É necessário primeiro saber se serão condenados e a extensão das penas.
Se os que são acusados por formação de quadrilha receberem penas de apenas dois anos de reclusão, essa punição já estaria prescrita agora.
É que a prescrição é calculada de acordo com as regras do Código de Processo Penal. No atual estágio do processo do mensalão, toma-se como base a data do recebimento da denúncia, ocorrida no final de agosto de 2007.



Antes disso, Barbosa também desabafou. Estava indignado com a insuficiência das provas contra José Dirceu. Nas palavras do ministro, o procurador-geral da República e coletor das evidências Roberto Gurgel tinha feito um trabalho deficiente. Como calculava que a pena por formação de quadrilha seria de 2 anos, o crime de formação de quadrilha, denunciado em 2007, já estaria prescrito quando julgado.

Em 2012, a Ação Penal 470 foi finalmente julgada e os principais envolvidos condenados. Mas uma coisa chamou atenção: a ausência de recurso. Como o julgamento foi feito pelo órgão máximo da justiça no país, não cabia qualquer medida de recurso ou revisão de julgamento para os réus.

Ano passado, quando o gigante estava acordado, a população foi à loucura com os tais embargos infringentes, até hoje mal compreendidos. Os embargos infringentes são, sem dúvida, um recurso no mínimo estranho. Parte do princípio de que deve-se repensar qualquer decisão não unânime ou, pelo menos, folgada entre os ministros. Quando o Supremo votou pelo acato dos embargos infringentes, Joaquim Barbosa ficou indignado, ainda que o recurso tivesse sido usado em diversas ocasiões pelo órgão, inclusive pelo próprio ministro.

Na quinta-feira passada, Luís Roberto Barroso - que ainda não ocupava cadeira no Supremo em 2012 - votou pela inocência dos acusados pelo crime de "formação de quadrilha". Para ele, os autos apontam para a hipótese de coautoria, e não formação de quadrilha. "Para caracterizar esse crime é preciso estar presente o dolo, a estabilidade e a unidade de desígnios", o que, segundo ele, não estaria provado nos autos. Durante o julgamento, em 2012, o prof. Túlio Vianna escreveu sobre o excesso de barulho pra pouca prova.

Em 2007, o mesmo Supremo Tribunal Federal havia inocentado do crime de formação de quadrilha o senador Ivo Cassol (PP-RO) e mais dois réus por fraude em licitações entre 1998 e 2002, na cidade de Rolim de Moura, em Rondônia. A decisão acompanha o raciocínio de que nem toda associação criminosa precisa ser, necessariamente, uma quadrilha. O código penal é claro em distinguir "formação de quadrilha" de "sofisticada organização criminosa" e "associação criminosa". Para ser "quadrilha", o grupo precisa estar frequentemente associado para práticas criminosas, o que não aconteceu. Tanto Genoíno quanto Dirceu e Delúbio já ocupavam seus respectivos cargos quando estiveram envolvidos com as instituições financeiras e os parlamentares no esquema de compra de votos.


Com todo o cuidado, Barroso sugeriu que Barbosa havia agravado desproporcionalmente, em até 75%, as penas dos condenados, o que lhe chamava muita atenção. E mais, que havia um motivo muito claro pra isso: a intenção de Barbosa em evitar a prescrição do crime de formação de quadrilha e a mudança do regime aberto para o semi-aberto, de acordo com as novas sentenças. Pra surpresa de todos, Barbosa não titubeou e respondeu, na lata: "foi feito pra isso sim!"

Joaquim Barbosa assumiu publicamente fraudar o próprio sistema judiciário para alimentar a vontade de manter em regime fechado José Dirceu, Genoíno e Delúbio Soares, entre os 8 réus julgados por formação de quadrilha.

Mas aqui no mundo real isso não faz a menor diferença. Quem acompanhou as consequências do descontrole de Barbosa depois do voto de Teori Zavascki sabe que não faz. Primeiro que, aparentemente, já se esqueceu que os condenados continuam condenados e, inclusive, presos. Aqui no mundo real ninguém quer saber o que realmente são os embargos infringentes. No mundo real, Barbosa virou ídolo. Tem sido objeto do fascínio pela vingança, e não pela justiça.


Talvez por isso Barbosa tenha se transformado no queridinho da direita. O STF, que deveria ser guardião da Constituição, com Barbosa, virou da moral. Se a morosidade dos processos é um problema que livra a barra de políticos corruptos que se beneficiam do sistema, está na hora de reformá-lo, e não de fraudá-lo. Afinal de contas é isso que distingue justiça de justiçamento. Mas aqui isso também não importa mais.

Joaquim Barbosa hoje percorre as redes com uma brutalidade implacável daqueles que organizam nova edição da Marcha da Família com Deus pela Liberdade e defendem que a presidência do país seja comandada por ele junto ao exército, que extinguiria os partidos políticos e o Congresso.

Talvez a imagem que melhor defina Barbosa seja a reproduzida pela revista Veja, em novembro do ano passado. Caminha de costas para o espectador, com a toga reluzente de um justiceiro como o de Gotham City.

Abraços,
Murilo