terça-feira, 30 de setembro de 2014

Sons e ruídos: A MPB, o cenário musical e o Brasil contemporâneo

por LUIS FELIPE GENARO

“Em um momento em que tudo fica fácil; que gravar música é fácil, que produzir música é fácil e que a internet divulga com a maior facilidade, é de se imaginar que as pessoas consumam o melhor. Quanto maior cresce a indústria cultural e as facilidades, pior é a música”, constatou o maestro, músico e fundador da Amazonas Filarmônica, Júlio Medaglia. Frente ao provocador Antônio Abujamra, ele continuou: “essa música sertaneja que ouvimos durante a década de 90 toda não passou de um bolerão de puteiro. [...] E o falso pagode também, que persistiu durante tantos anos até recentemente, todo ele junto não vale uma pausa da música de Nelson Cavaquinho”. 


Em sua crítica ferina, Medaglia aponta para questões interessantes. De fato, nós vivenciamos hoje uma maior facilidade na busca e deleite de sons e ritmos que durante as décadas de 1950, 1960 e 1970 foram totalmente impensáveis. Graças à globalização temos uma maior facilidade para a gravação de músicas, vídeos e sons, transmitindo-os para quem quisermos e em qualquer lugar do mundo. Por outro lado, nosso cenário musical recente, tendo como base a generalizante Música Popular Brasileira (MPB), mostra-se, contudo, em crise. Senão em crise, já em plena decadência. 

Na gestação do campo artístico-musical brasileiro, e nela a MPB, relações conflituosas foram constantes. Da erudição brasílica de Villa-Lobos aos sambistas Noel Rosa e Pixinguinha, da Bossa Nova de João Gilberto e Tom Jobim até as porra-louquices da dita Tropicália, rupturas e tensões foram impulsos implícitos para o surgimento de melodias e canções memoráveis – tanto criativas como combativas. Para o historiador Marco Napolitano, “ao longo deste ciclo, surgiu e se consagrou a expressão Música Popular Brasileira (MPB), sigla que sintetizava a busca de uma nova canção que expressasse o Brasil como projeto de nação idealizado por uma cultura politica influenciada pela ideologia nacional-popular e pelo ciclo de desenvolvimento industrial, impulsionado a partir dos anos 50”. 

Neste ínterim, já no início da década de 1960, tomado à consciência de que éramos um país terceiro-mundista – conceito já descartado pela geopolítica – ou dito subdesenvolvido, na sua grande maioria uma população politicamente desmotivada e presa fácil para as garras estadunidenses, a União Nacional dos Estudantes (UNE) lançava o disco “O Povo Canta”, almejando alcançar um público abrangente, das periferias à classe médio-baixa, nelas incitando um espírito crítico através do humor. A mudança e a transformação pareciam, nos corações e mentes de artistas ligados à esquerda, uma realidade que poderia ser facilmente alcançada. 


Em 1º de Abril de 1964, entretanto, caía João Goulart. Com ele, foi-se todo um grupo de intelectuais e políticos que visava reformar radicalmente as principais estruturas da nação. A partir dali, o Exército brasileiro aliado a setores conservadores e reacionários tomaria as rédeas do país, perseguindo, torturando e silenciando de forma brutal todos os seus opositores. Um dia que duraria 21 anos. 

Para Napolitano, naquele período o “ouvinte padrão de MPB, o jovem de classe média com acesso ao ensino médio e superior, projetou no consumo da canção as ambiguidades e valores de sua própria classe social. Ao mesmo tempo, a MPB, mais do que reflexo das estruturas sociais, foi um polo fundamental na configuração do imaginário sócio-político da classe média progressista submetida ao controle do Regime Militar”. 

Exemplo disso foi a canção “João da Silva” (1961), de Billy Blanco, componente do disco O Povo Canta. Nela, o fictício cidadão João da Silva usa e abusa de marcas e produtos estrangeiros, consome filmes, vestimentas e alimentos internacionais (“chiques”) e vive alienado das principais questões econômicas e políticas brasileiras, sendo “tapeado desde as 5 da manhã”. 

Nos palcos e festivais, Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Elis Regina, Gal Costa, entre tantos outros, brilhavam, compunham e cantavam de forma a abalar tudo o que até aquele momento estava posto. “As canções de MPB surgiram sendo objetos híbridos, portadores de elementos estéticos de naturezas diversas, em sua estrutura poética e musical”, afirma Napolitano. As críticas a uma sociedade desigual e elitista, baseada no esbanjamento e consumo de objetos caros e finos, ficou ao encargo de Bethânia com a canção “Pano Legal/Café Soçaite” (1968), e Elis com “Alô, Alô, Marciano” (1980). 


O embate contra a ditadura, que gradualmente se intensificava, recaiu principalmente sobre Chico, Gil e Milton Nascimento, que passaram a compor e cantar canções de resistência e protesto. A canção “Funeral de um Lavrador” (1966), de Chico, composta em conjunto com João Cabral de Melo Neto, por exemplo, denunciava as mazelas do campesinato brasileiro e o poder atroz dos grandes latifundiários. “Cálice” e “Apesar de Você”, ambas da década de 1970, também fizeram grande sucesso, incitando a ira dos censores militares. 

Sabemos que desde a era dos festivais, depois a redemocratização e os anos que se seguiram, o Brasil mudou bastante. Vivemos um tempo de pluralidades, mesmo que muitas vezes elas não sejam devidamente respeitadas. Discordo do maestro Júlio Medaglia quando critica as facilidades de se buscar e consumir o “melhor” nos dias de hoje, inferiorizando outros estilos e ritmos musicais. Nota-se também que suas assertivas não estão inteiramente equivocadas. A cada dia nascem novos MC’s e duplas sertanejas universitárias embalando singles quase sempre ruidosos, desconexos, vazios e completamente sem harmonia. Cantam amores efêmeros, excitação, baladas – e só. Longe de mim ser um voraz moralista ou impávido censor, mas reflito sempre que posso: algo parece estar errado. 


Quando se fala na decadência do cenário musical brasileiro o assunto resume-se logo em preconceito. Não gosta de funk ostentação? Preconceituoso. Não gosta de sertanejo? Preconceito. Creio que as coisas não funcionam dessa forma. Há singularidades sociais no funk, estilo com grande apelo popular, e questões importantes que nele transitam. Sabemos que generalizações são sempre riscos iminentes. Quer uma prova? O que dizer do “funk de protesto” composto por um garoto da Zona Sul de São Paulo, MC. Garden? Minha revolta aflora, por exemplo, quando o Ministério da Cultura (MinC), através da Lei Rouanet, repassa 4,1 milhões de reais para uma turnê de shows de Luan Santana. Milton Nascimento recebe apenas 957 mil. Reflito até que ponto a brutal indústria cultural parece moldar nosso recente cenário musical. 

Enquanto a massificação cultural marcha a todo vapor – forte aspecto da modernidade analisado por Theodore Adorno e Max Horkheimer, intelectuais ligados à Escola de Frankfurt – as “canções-produto” deste novo tempo integram uma lógica perversa que visa, ao mesmo tempo, padronizar indivíduos e gerar lucro para os detentores do poder econômico. Aquela velha MPB, coitada, parece arrastar-se com seus esqueletos antigos, discos empoeirados e ícones de uma nova geração pouco conhecida. 

Hoje, em crise, transformação ou caindo à ladeira, inquestionável é que o batidão estridente de Mr. Catra parece ter mais valor que as vozes de Bethânia, Gil e Chico juntas. Resta-nos... paciência. 

Referências: A música popular brasileira (MPB) dos anos 70: resistência política e consumo cultural, por Marcos Napolitano. 

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Palácio blindado

Como Geraldo Alckmin sai ileso dos maiores problemas do estado de São Paulo e caminha a passos largos para mais uma reeleição no 1º turno

Naquela quarta-feira incomum de junho de 2013, Fernando Haddad e Geraldo Alckmin chamaram a imprensa às pressas para uma coletiva. Anunciavam juntos a redução das tarifas de ônibus e metrô, que voltariam a custar R$ 3 depois de pelo menos 6 atos contra o aumento de 20 centavos. Era tarde demais: nem o Movimento Passe Livre sabia, mas as manifestações já tinham ultrapassado as bandeiras do transporte e as fronteiras da capital.

Tão perto e tão longe dali, milhares de brasileiros tomaram as ruas pra exigir mais educação, mais saúde, menos corrupção e violência policial. Seu alvo principal, Brasília. Mas nem por isso centenas de prefeituras em todo país deixaram de ser invadidas, apedrejadas e tomadas por algumas horas pelos manifestantes enfurecidos. 

Durante a coletiva, Alckmin falou. Mas talvez nem precisasse. Sua capacidade de descolamento das crises encaradas no estado é de causar inveja pra políticos de qualquer lugar do mundo. Assiste de camarote a elas sem que seja ao menos citado por quem passa diariamente pelos problemas acumulados no estado e caminha triunfante para uma provável vitória ainda no primeiro turno.

Passados os protestos, a aprovação do governador voltou a ocupar a faixa de quase metade dos paulistas e Alckmin passou quase toda a campanha com metade das intenções de voto no estado. É a principal escolha dos jovens entre 16 e 24 – muitos dos que estiveram nas ruas em junho. 

De todas as reivindicações apontadas nos protestos em São Paulo, todas poderiam ter sido solucionadas ou melhoradas por ele ou seu partido, há nada menos que 20 anos no comando do Palácio dos Bandeirantes, a maior sequência em todo país desde a redemocratização.

Enquanto as redes municipais despontam como destaque no desenvolvimento da educação básica, a rede estadual está em queda livre: no dia 20 de agosto, o próprio governo anunciou o pior resultado obtido em 6 anos no Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo. Como se não bastasse, as universidades estaduais passam pela maior crise da história, a ponto de um novo espectro do neoliberalismo se reaproximar do ensino público superior, conforme indicação das principais lideranças intelectuais do PSDB. Ainda assim, o governo do estado permanece intocado diante do cenário desastroso.

Quando acirravam-se as tensões de uma Copa do Mundo repudiada por manifestantes em todo país e esperava-se que o exército nas ruas fosse o encarregado da repressão, a polícia militar que mais mata no mundo aproveitou a inversão da opinião pública sobre os protestos e manteve presos políticos por meses, além de protagonizar fiascos homéricos plantando provas em mochilas ou atirando na cara de vendedores ambulantes. Só no primeiro semestre de 2014, a PM de São Paulo matou 317 pessoas, 111,3% a mais do que no mesmo período do ano passado. Na capital, o aumento foi de 147% – isso de acordo com os registros oficiais. Nos debates ou planos de governo, nem sinal de qualquer iniciativa que minimize a letalidade da corporação. Isso tanto no discurso de Alckmin quanto no do único adversário possível para um segundo turno, Paulo Skaf. 70% dos brasileiros hoje não confiam na polícia militar, mas não o suficiente para apontar relação entre a gestão estadual e o comando da corporação em São Paulo.

No auge das campanhas anticorrupção pelo país, as manchetes dos jornais encaram como "Caso Alstom" o gigantesco esquema denunciado no ano passado em que a Siemens admite ter pago propina a autoridades de diferentes governos do PSDB em São Paulo e formado cartel com outras empresas, com anuência do estado. Em 2014, 56% de todos os recursos do partido para a reeleição de Alckmin vêm de doações de empresas investigadas no escândalo. No fim do ano passado, o PSDB conseguiu barrar as investigações do caso na Assembleia Legislativa.

Ontem o discreto título da Folha apontou para outro caso que facilmente estamparia a capa dos maiores periódicos do país fosse protagonizado pelo Partido dos Trabalhadores: a Tejofran, também investigada neste cartel entre 1998 e 2008, foi favorecida em licitação do Departamento de Águas e Energia Elétrica no ano passado, como atestam os e-mails trocados entre seus diretores, descobertos pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Mais do que isso, as conversam indicam cartel na Parceria Público Privada para construção e manutenção de piscinões com valor estimado em R$ 3,8 bilhões, negócio só não concluído graças à intervenção do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.

Se hoje 2,1 milhões de pessoas na região metropolitana são afetadas com a falta d'água constante nas torneiras, menos da metade dos paulistas aponta o governo do estado como responsável pelo racionamento, que, apesar de não reconhecido oficialmente, na prática atinge duas vezes mais os bairros mais pobres. No interior, os índices são ainda mais favoráveis ao governador: 63% dos paulistas sequer relacionam a gestão tucana com o problema. Em Itu, um dos reservatórios que abastece a cidade está com menos de 2% de água. O resultado do caos: a população se revoltou, mas invadiu e depredou... a Câmara Municipal de Vereadores. Na cobertura do caso pelo G1, o termo "governo do estado" não foi citado rigorosamente nenhuma vez. 

Quando a questão atingiu Itararé no fim do ano, pipocaram postagens na rede que apontavam a prefeita como culpada pela falta de distribuição no município. Assim como aqui, no estado todo foram as prefeituras quem mais sentiram na pele a deficiência de um serviço que, na verdade, permanece sob a responsabilidade do governo estadual de acordo com o pacto federativo. Se o estado entregou a Sabesp a acionistas e não tem mais o controle sobre a companhia, essa é outra conversa. Aliás, as ações de investigação sobre a atuação da empresa que se têm notícia hoje são movidas pelos poderes legislativos municipais ou o estadual. Do executivo, nada além de culpar São Pedro.

No fim de agosto, a relatora da ONU para a questão da água, Catarina Albuquerque, divulgou os resultados de sua investigação no final de 2013. A pesquisadora foi categórica: faltaram investimentos do governo do estado para impedir a seca nos reservatórios. Também choveu menos em diversos estados do país, mas em São Paulo a distribuição de água foi mais afetada do que em qualquer outro. Anteontem, dia 27, o Sistema Cantareira chegou ao nível mais baixo da história, 7,1%, mesmo com a captação do "volume morto". Agora a ideia é buscar água potável de cavas de mineração.

Ainda assim, na última sexta-feira o Datafolha anunciou: 51% dos paulistanos vão reeleger Geraldo Alckmin como governador do estado, custe o que custar.

Não é a toa que o candidato governista demonstre tanta irritação nos debates. 4 anos depois do início de mais um ciclo no poder, é pela primeira vez pública e diretamente questionado sobre a atuação de um governo distante dos problemas reais e blindado por uma imprensa conivente com as suas deficiências e contradições. Por mais imprevisíveis que possam ser as eleições, não é difícil supor que 5 de outubro vai trazer a confirmação do que já se espera desde sempre: são mais 4 anos de PSDB.

Abraços,
Murilo

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Gayzismo ou saúde pública?

Discussão sobre a sexualidade na era pós-moderna 

por LUCAS SANTOS*


É imprescindível, para uma discussão que envolva sexualidade na atualidade, a compreensão de alguns conceitos básicos ligados à própria sexualidade e ao gênero. 

Em primeiro lugar, devemos compreender o que é a dita identidade de gênero. Esta se trata basicamente de como a pessoa se sente, ou seja, desvencilhando-se da criação comum da noção de gênero, o indivíduo, mesmo apresentando características físicas atribuídas biológica e culturalmente a um sexo (masculino ou feminino), não se identifica como tal. Por exemplo, o cartunista brasileiro Laerte, por muito tempo forçou-se a aceitar sua condição biológica de gênero tendo um comportamento culturalmente atribuído a quem nasce com características masculinas. Ultimamente, porém, assumiu sua identidade de gênero, ocasionando uma quebra com as noções vigentes e, mesmo possuindo características físicas masculinas, aderiu costumes atribuídos ao feminino. 

Outro ponto é a orientação sexual, este um tanto quanto confuso no imaginário tradicional cisgênero. A orientação sexual se refere, basicamente, ao que o indivíduo gosta ou o que lhe proporciona prazer, ou seja, está atrelada às noções de homossexualidade e heterossexualidade, porém estas duas nomenclaturas não esgotam seu conteúdo, afinal não existem fronteiras para o prazer humano. 

Por fim, temos o sexo biológico ou como o indivíduo nasce no que se refere às suas características físicas. Determinado pela ação biológica de estruturas denominadas cromossomos, está relacionado à nossa formação embrionária, onde a ligação entre os cromossomos sexuais XX determinam características físicas atribuídas ao feminino e entre os cromossomos XY determinam características físicas atribuídas ao masculino.


A falta de discussão sobre estes conceitos em meios influentes acaba levado à margem os setores envolvidos nas lutas por causas que se relacionam à identidade sexual e ao gênero. Podemos tomar como exemplo de tal afirmação as constantes acusações e ataques ao deputado federal, eleito em 2010 pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) do Rio de Janeiro, Jean Willys. Este, além de ser o único deputado que se pronuncia abertamente homossexual, tem em seu plano de governo projetos de lei como o PL 4916/2012 - que "assegura preferência às empresas que tenham programas pró-equidade de gênero, identidade de gênero, orientação sexual e/ou raça/etnia, bem como projetos de inserção de idosos e idosas no mercado de trabalho como critério de desempate no processo licitatório". Por este e outros projetos, além da defesa da inserção das discussões da questão do gênero na Lei de Diretrizes de Base, Willys é acusado de ser um "Ditador Gayzista" pelos setores mais conservadores, tanto da política quanto da comunidade religiosa. 

Os setores conservadores, que por vezes se comprometeram com o fornecimento da cura das consideradas inadequações sexuais (vide PDC 234/11 do deputado federal João Campos - PSDB) através de tratamento psicológico, indo inclusive em direção contrária ao relatório publicado pela Organização Mundial de Saúde em 17 de maio de 1990, que retira a homossexualidade da condição de doença, não levam em consideração que as questões envolvidas podem sim acarretar um problema à saúde pública, mas não à extinção da humanidade por falta de agentes reprodutores, como é previsto em discursos mais drásticos dos defensores da existência de desvios sexuais, e sim ao aumento no número de suicídios, casos de depressão e neurose devido à pressão a que são submetidos os indivíduos que, por assumirem um gênero meramente social, imposto culturalmente, não conseguem se reconhecer, em alguns casos, pela própria repressão. 

Movimentos como o queer ou o anarco queer, surgidos no seio do maio de 1968 e embalados pelo pensamento foucaultiano, atribuem à clausura e privatização do sexo enquanto objeto de discussão grande parte dos problemas envolvendo a sexualidade, pois a redução do sexo à relação entre um pênis e uma vagina o limita ao carnal, ao tabu e ao pecado, impossibilitando seu tratamento enquanto um regulador social estabelecido pela sociedade patriarcal e que serve, além da reprodução e do prazer masculino heterossexual, para reafirmar o poder do homem sobre mulher, defendido por este sistema. 

Sob esta ótica, podemos considerar que, apesar da possibilidade atual do relacionamento entre amor e sexo, esta se limita, ainda aos mantenedores das relações socioculturais estabelecidas no final da era moderna, que ainda constituem as maiorias e que, em grande parte dos casos, tem suas práticas e costumes reconhecidos como modelo, e as minorias, que buscam o reconhecimento de seus direitos e ficam fadadas à disfunção.


* Acadêmico de Licenciatura em História pelas Faculdades Integradas de Itararé. Atua como estagiário na Assessoria de Imprensa da Prefeitura Municipal de Itararé.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

A Educação no discurso político dos presidenciáveis: entre a mercantilização e a formação

por OSVALDO RODRIGUES JUNIOR


Desde o século XVII, Jan Amos Comenius, o criador da Pedagogia moderna, na sua Didática Magna, propunha ensinar “tudo a todos totalmente” (Omnes Omnia Omnimo). Neste sentido, o pensador foi o precursor da educação democrática que deveria incluir a todos, homens, mulheres, pobres, ricos, “mais capazes” e “menos capazes”. Porém, no mundo capitalista, a concepção democrática de Comenius ganhou um concorrente, o mercado. Desta forma, a educação foi transformada em mercadoria e as instituições privadas de ensino passaram a oferecê-la como “um bem a ser adquirido”. 

No Brasil, tal processo de transformação da educação em mercadoria foi iniciado com a Lei de Diretrizes e Bases de 1961, que estabeleceu “uma relação de complementaridade entre o setor público e o setor privado”. Durante a Ditadura Civil-Militar, o que se observou foi o aprofundamento desta diretriz, com o predomínio da iniciativa privada. Assim, os militares, a partir de uma pedagogia “tecnicista” criaram as escolas técnicas, que atendiam às camadas populares, mantendo o ensino superior público acessível para “poucos” e abrindo espaço para que o setor privado se expandisse com a demanda. 

Após a redemocratização do Brasil, este processo de “mercantilização” se aprofundou nas gestões do presidente Fernando Henrique Cardoso entre 1994 e 2002. Neste contexto, a descentralização da educação e a desresponsabilização do governo federal acompanharam um movimento de crescimento das instituições privadas de ensino e pouco investimento na educação pública. Tal crescimento pode ser melhor observado nas matrículas reservadas ao ensino superior. 


Mesmo com os avanços, principalmente no ensino superior e tecnológico por meio dos Institutos Federais durante os 12 anos de governo Lula/Dilma, com a criação de campi universitários e tecnológicos por todo o Brasil, com o Programa Universidade para Todos – PROUNI –, que em 10 anos formou 400 mil profissionais, mantém-se a complementaridade, com o pagamento de mensalidades em instituições privadas. Se por um lado este programa democratizou o acesso ao ensino superior, por outro manteve a lógica do capital na educação ao inverter recursos públicos para a iniciativa privada. O projeto é justificável pela ausência de vagas no ensino superior público ou mesmo pelos problemas estruturais da “escola pública” no Brasil, que acabam não permitindo aos alunos das camadas populares ascenderem à universidade pública. 

Com a proximidade das eleições presidenciais, a educação volta à pauta por meio do discurso político na tentativa de convencer os eleitores na direção de que “só a educação pode transformar a sociedade”. O objetivo deste artigo é justamente apresentar as propostas para a educação a partir da análise dos programas ou diretrizes de governo dos presidenciáveis: Dilma Rousseff (PT), Aécio Neves (PSDB), Marina Silva (PSB), Pastor Everaldo (PSC), Eduardo Jorge (PV) e Luciana Genro (PSOL). 

O programa de governo de Dilma, candidata à reeleição pelo Partido dos Trabalhadores – PT –, apresenta as propostas de maneira integrada e não por área. Desta maneira, o programa tem por objetivo continuar dando oportunidade de ascensão social aos mais pobres. Para isso, a educação é fundamental. O programa destaca o investimento de 75% dos royalties do petróleo e 50% dos excedentes do pré-sal para a educação, mantendo o compromisso do Plano Nacional da Educação – PNE – de investimento de 10% do Produto Interno Bruto – PIB – na área. Outro compromisso é o da ampliação da Rede de Educação em Tempo Integral para 20% da rede pública até 2018. Serão concedidas 100 mil bolsas no programa Ciências Sem Fronteiras e 12 milhões de vagas na segunda fase do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego – PRONATEC –, o que promete melhorar a qualificação profissional dos brasileiros. Portanto, o programa de governo de Dilma Rousseff indica a manutenção da política educacional de ampliação das oportunidades de acesso ao ensino superior e apresenta a educação em tempo integral como possibilidade para a melhoria da qualidade da educação básica no Brasil. 


Aécio Neves, candidato do PSDB, ainda não apresentou um programa de governo formal, mas apenas as diretrizes. Dentre as oito grandes áreas apresentadas, está a educação. Uma leitura descuidada das diretrizes de Aécio nos faz questionar: qual a diferença entre a sua proposta para a educação e a da candidata Dilma? Isso porque o candidato tucano reafirma o compromisso com programas criados nos 12 anos de governo petista como FUNDEB, ProUni, FIES, PRONATEC e ENEM, porém sempre complementa com o verbo “aprimorar”. Apesar de reconhecer a importância destes programas educacionais, Aécio defende a base da política educacional promovida por FHC: a abertura à iniciativa privada e a meritocracia. Manutenção dos benefícios à iniciativa privada quando indica que “articulação, de modo mais eficiente, da iniciativa privada ao esforço de ampliação das vagas e da qualificação do ensino superior”; meritocracia quando aponta para atrelamento entre o salário do professor e o rendimento dos alunos mediante avaliações externas. Sendo assim, Aécio indica o aprofundamento da política neoliberal para a educação conforme proposta de um dos criadores do seu programa de governo, Samuel Pessoa

Marina Silva inicia o capítulo sobre educação do seu programa de governo com a defesa da educação integral. Para isso, a candidata indica a necessidade de construção de novas escolas e a ampliação das já existentes. O combate ao analfabetismo é outra bandeira levantada pela candidata, que propõe para isso “desburocratizar” o repasse de recursos federais, sem mencionar como. O programa ainda destaca o problema do Ensino Médio no Brasil atrelado ao crescimento da chamada geração “nem-nem”, ou seja, jovens que nem trabalham e nem estudam. Deste modo, a proposta é criar um Ensino Médio dinâmico e disposto a atrair essas gerações de estudantes. Nesta direção, o Programa “Ganhe o Mundo”, criado no Estado de Pernambuco, e que aumenta a carga de aulas de Língua Estrangeira e concede bolsas para o exterior para alunos do Ensino Médio da rede pública, será expandido para todo o país. A candidata, assim como Aécio, reafirma a importância e promete a manutenção de PRONATEC, FIES e ProUni, além de endossar o compromisso com o Plano Nacional da Educação. Para isso, Marina indica a necessidade de aumento de aporte da União na Educação e, assim como Dilma, defende o repasse de uma parcela dos royalties do petróleo e do pré-sal, apesar de todas as contradições destacadas pela imprensa sobre o posicionamento de Marina em relação ao pré-sal

Pastor Everaldo, do Partido Social Cristão - PSC -, defende "sem rodeios" o neoliberalismo e a meritocracia. Para isso, defende a expansão do ProUni para o ensino técnico, médio, fundamental e infantil; a desburocratização da abertura de instituições privadas de ensino; e o investimento na educação à distância para baratear o custo. Em relação à meritocracia, propõe: "inserção de mecanismos típicos de eficiência dentro do sistema público para sua melhoria, em especial a meritocracia e o plano de metas". Assim, Everaldo defende o aprofundamento da lógica do capital na educação e praticamente a extinção da educação pública no Brasil. 

Eduardo Jorge, do Partido Verde - PV -, apresenta propostas interessantes e diversas dos três candidatos majoritários. O candidato defende a criação de mecanismos de avaliação da escola pela comunidade e a inserção obrigatória da disciplina de Direitos Humanos em todos os níveis de ensino. Além disso, defende as cotas e o cumprimento da lei 11.684/08, que determina a inserção das disciplinas de Sociologia e Filosofia em todos os anos do Ensino Médio. 

Conforme o site oficial da candidata Luciana Genro do Partido Socialismo e Liberdade - PSOL -, o programa foi lançado no dia 23 de setembro e ainda não está disponível para consulta pública. Desta forma, a análise toma como fonte as diretrizes de governo da candidata. Dentre as diretrizes, uma parte específica é dedicada à educação, com bom volume de informações. De início a candidata se coloca contra o que chama de "modelo privatista" e a favor de o governo federal assumir a responsabilidade pela criação de um Sistema Nacional de Educação composto pela União, municípios e estados. Além disso, a candidata questiona o modelo meritocrático composto de "provinhas e provões", e propõe a mobilização popular como forma de avaliação das instituições de ensino. 


Luciana mantém o compromisso de destinar 10% do PIB para a educação, porém apenas para a educação pública, lembrando que o PNE foi aprovado com a possibilidade de o governo considerar o ProUni como parte dos 10%, o que permitirá o investimento em instituições privadas de ensino. Em dois anos a candidata propõe dar início ao Custo Aluno-Qualidade (CAQ), que será medido pelos estados e discutido com a União para o repasse das receitas. Em relação à carreira de docente, a diretriz critica o sucateamento da profissão e se compromete com duas metas: o piso salarial proposto pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos - DIEESE -, que seria de R$2.979,25 por 20 horas aula, e o 1/3 de hora fora da sala de aula. Para isso, a candidata propõe que só receberão os repasses os estados que adotarem essa política de valorização docente. 

Em relação ao acesso e à permanência, Luciana não propõe o corte imediato de bolsas do ProUni e de outros programas de inserção das camadas populares em instituições privadas, porém indica que esses programas devem ser transitórios até a demanda ser suportada pelo ensino superior público. O programa ainda propõe a Educação para os Direitos Humanos, como forma de vencer a opressão. Em relação à democratização da gestão, Luciana propõe a eleição direta para diretor de escola e reitor de universidades. Para colocar em prática todas as propostas, a candidata coloca como fonte de recurso os royalties do petróleo e os recursos para pagamento da dívida pública, que leva praticamente 40% do PIB do país. 

Analisando os programas ou diretrizes de governo para a área da Educação percebemos três perspectivas diferentes: privatista, continuísta e progressista. No caso de Aécio Neves (PSDB) e mais claramente do Pastor Everaldo (PSC), o modelo privatista é o escolhido, com o incentivo à iniciativa privada em detrimento da educação pública. Dilma (PT) e Marina Silva (PSB) propõem a manutenção de políticas públicas existentes e a Educação Integral como forma de vencer o “déficit” da educação básica pública. A diferença é que a candidata à reeleição deixa claro de onde virão os recursos para promover a manutenção das políticas públicas e a ampliação de outras. Eduardo Jorge (PV) e mais veemente Luciana Genro (PSOL) propõem o rompimento com a lógica privatista ou “lógica do capital”, no sentido empregado por Mészaros (2005), que privilegia a iniciativa privada em detrimento da educação pública, entendendo que “o papel da educação é soberano, tanto para elaboração de estratégias apropriadas e adequadas para mudar as condições objetivas de reprodução, como para a automudança consciente dos indivíduos chamados a concretizar a criação de uma ordem social metabólica radicalmente diferente” (MÉSZAROS, 2005. p.65). 

Por fim, os privatistas compreendem a educação como mercadoria, os continuístas ficam entre a mercantilização e a formação e os progressistas rompem ao afirmar que “a educação não é mercadoria”. 

Abraços, 
Osvaldo. 

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Enigmas de Marina

por ISRAEL CASTILHO


Ambientalista ou ruralista? Verde ou amarelo? Dilma ou Aécio? Nirvana ou Guns N' Roses? Com Bolsa ou sem Bolsa Família? Silas ou Francisco? Esquerda, direita, centro ou fundão? Chico Mendes elite ou não? 2 Pac ou Notorious B. I. G? Amor sem beijinho ou Buchecha sem Claudinho?

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Respeite meu preconceito

"O humor muitas vezes serve para reforçar visões que são tradicionais para dizer o mínimo que são conservadoras que são até claramente preconceituosas" (Laerte) 

por MARCUS V. DO NASCIMENTO


O humor sempre esteve presente nas relações sociais entre os seres humanos. O riso se constitui em um modo como as pessoas tratam assuntos que lhe são comuns. O historiador Elias Thomé Saliba, autor do livro Raízes do Riso (Cia. das Letras, 2002), em entrevista para a Revista de História da Biblioteca Nacional, afirma que “humor é uma maneira de lidar com a coisa pública”. 

Nos últimos anos, muitas piadas nos fizeram pensar quais são os limites do humor ou se ele tem algum limite, e o documentário o Riso dos Outros, do diretor Pedro Arantes, colaborou e muito nessa reflexão. Um dos protagonistas dessa discussão, sem dúvida nenhuma, é o comediante e apresentador Danilo Gentili, que repetidamente tem seu nome envolvido em polêmicas. Na última o comediante postou em sua conta do Facebook uma montagem que comparava a candidata à presidência da república Luciana Genro, vinda de uma família de origem judia, ao ditador genocida Adolf Hitler. Depois da grande repercussão da postagem a mesma foi apagada. 

 
Em 2008, Danilo Gentili ganhou projeção nacional integrando o time do programa Custe o Que Custar (CQC) da Band. Com um humor ácido e irreverente, colocava políticos, autoridades religiosas e celebridades em situações desconfortáveis. A simpatia pelo rapaz de paletó e óculos escuros que questionava abertamente pessoas públicas sobre seus atos e discursos foi imediata. 

Muitos parlamentares fugiam das investidas de Gentili no Congresso, criando em torno de si a imagem de um “justiceiro” que empunhava o seu microfone com bom humor e peitava políticos. A publicação da revista Veja de 2009 o define como um repórter-humorista com “licença para matar”, o “terror dos políticos”. 

No ano de 2011 estouraram vários escândalos envolvendo o nome do senador Renan Calheiros (PMDB), o que resultaria em processos e pedidos de cassação por seus pares. Gentili abordou o senador e questionou a sua pretensão de assumir a presidência do Senado Federal com a seguinte frase: “ter você como membro do Conselho de Ética é o mesmo que ter Fernandinho Beira Mar no ministério antidrogas”. Logo após o episódio a polícia tentou expulsar Gentili e os membros de sua equipe da Casa, mas não conseguiram. 

As tentativas de agressão sofridas pelo comediante e as restrições impostas ao seu trabalho aumentavam ainda mais a sua áurea de defensor da liberdade de expressão. O sucesso o fez sair do CQC e alcançar o posto de apresentador de Talk-Show. 

Porém, um outro lado do seu humor, aquele rasteiro que se apoia em preconceitos contra minorias, reforçando o pior do conservadorismo, começou a figurar cada vez mais no seu repertório de piadas. Ainda em 2009, quando integrava o CQC, Gentili fez uma infeliz comparação entre o King Kong e jogadores de futebol no Twitter, onde escreveu: “King Kong, um macaco que, depois que vai para a cidade e fica famosos, pega uma loira. Quem ele acha que é? Jogador de futebol?”. 

Outro comentário que causou enorme repercussão foi uma resposta dada pelo comediante para um internauta que reclamava de suas piadas racistas na TV. Gentili ofereceu bananas para o internauta para ele esquecer das piadas, o que gerou um processo, mas a justiça o inocentou das acusações


O humor baseado nos preconceitos cristalizados na nossa sociedade não é nada transgressor, pelo contrário, ajuda a perpetuar preconceitos e papéis sociais. Segundo a professora, feminista e blogueira Lola Aronovich

“Sim, muitas vezes o humor é transgressor. Mas o que esse pessoal que ataca minorias pra fazer piada precisa entender é que eles não estão transgredindo nada. Seus tataravôs já eram racistas, gente. Pode ter certeza que seus tataravôs já comparavam negros com macacos. Aposto como seus tataravôs já faziam gracinhas sobre a sorte que uma moça feia teve em ser estuprada. Vocês não são moderninhos, não são ousados, não são criativos. Vocês estão apenas seguindo uma tradição. E, se naquela época já não era engraçado, imagina agora? Rebeldia é querer mudar o mundo, começando pela forma que falamos. Não há nada de novo ou de rebelde em eternizar velhos preconceitos (…)”

Além de incentivar o racismo, as piadas de Gentili também serviram para deseducar a população em torno da doação de leite materno, assunto importantíssimo quando se discute saúde, pois a maior doadora foi comparada com um ator de filmes pornográficos: “Em termos de doação de leite, ela está quase alcançando o Kid Bengala”. A doadora, além de ser chamada de "vaca" nas ruas, também não consegue produzir mais todo o leite que doava. 

Ao ser questionado por suas piadas tanto na TV quanto na internet, o apresentador fala que não ele não pode ser privado de sua liberdade de expressão e que é contra todo o tipo de censura, talvez porque seus rendimentos, infelizmente, dependam desse tipo de piada. De acordo com sua fala no documentário O Riso dos Outros, o "comediante tem que ser uma prostituta. O que quero é riso, eu me vendo por riso, se você riu eu tô falando." 


Sobre o Marco Civil da internet, que procura responsabilizar as pessoas pelas as asneiras que postam na rede, Gentili diz que “estão desesperados para criar o tal Marco Civil da Internet e acabar com esse ambiente 100% livre. Eles precisam urgentemente controlar o que você faz, lê e fala.” Esse posicionamento, mostra que o comediante quer falar o que quer sem ter que prestar nenhum tipo de conta, não aceita que as pessoas questionem o que ele venha a dizer, ou seja, ninguém pode contrariar a sua opinião e falar que aquilo foi ruim de gosto duvidoso. 

Esse humor é um tipo de espetáculo onde você é proibido de torcer o nariz e obrigado sempre a aplaudir. É melhor estudar um pouco mais sobre o que significa censura. 

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Brasil: teu nome é desmemória*

Por que Dilma Rousseff?


Não adianta tapar o sol com a peneira. A verdade é que o governo petista nunca teve a popularidade tão baixa quanto agora. E há uma série de motivos pra isso. Junho de 2013 talvez tenha sido a explosão de uma bomba-relógio armada por uma série de insatisfações generalizadas e generalizantes que encontravam espaço nas redes sociais, mas que estavam distantes, até então, das ruas. Delas, poucas foram as conquistas sociais, mas a onda anti-petista varreu o país como nunca se viu antes.

De todas as razões que hoje alimentam o violento discurso contra Dilma e o PT, a principal parece ser a desmemória. Já em fevereiro deste ano, escrevi como convidado no Chuva Ácida sobre a onda conservadora que contamina o país. Minha tese é a de que a série de retrocessos publicamente defendidos por movimentos conservadores, como os linchamentos; a nostalgia do regime militar; e os surtos homofóbicos, racistas e misóginos têm uma relação umbilical com as transformações sócio-econômicas dos últimos 12 anos, desde a chegada de Lula ao Planalto.

Em 2011, o Brasil atingiu o menor índice de desigualdade social da história até então, 13% graças ao Bolsa Família. Com 10 anos de execução, o programa tirou 36 milhões de pessoas da extrema pobreza. Entre 2001 e 2011, o crescimento real da renda dos 10% mais pobres foi de 91,2%. Da pobreza, saíram 42 milhões. Numa década, o Brasil reduziu a mortalidade infantil em 40%. 21 milhões de novos empregos foram criados. O salário mínimo cresceu 71,5%.

Para se ter uma ideia do que isso realmente significa, entre 2008 e 2012 a estatura média de meninos atendidos pelo Bolsa Família aumentou 0,8 centímetro. Em 4 anos, a proporção de crianças abaixo da estatura padrão caiu de 17,5% para 8,5% em todo país. No sertão nordestino, o Bolsa Família causou uma verdadeira "revolução feminista". Com o recurso em mãos, a mulher conquistou seu maior direito possível: o poder de escolha.

Não saiu na capa de nenhum jornal de grande porte, mas a Organização das Nações Unidas para  Agricultura e Alimentação anunciou na semana passada que o Brasil está finalmente fora do Mapa Mundial da Fome. Em 11 anos, o país reduziu em 82% a população em situação de subalimentação.

O programa Minha Casa Minha Vida, instituído em 2009, completou cinco anos em abril com a contratação de 3,39 milhões de unidades, beneficiando mais de seis milhões de pessoas. A meta é atingir mais 2 milhões  até o final de 2014 e fechar os cinco anos de programa com investimentos da ordem de R$ 234 bilhões.

Enquanto ainda se repete o discurso de que este é um governo que só sabe dar o peixe, mas não ensina ou não oferece condições para pescar, o programa Crescer concede crédito com juros até mesmo abaixo da inflação para 3,5 milhões de pessoas, 1/3 delas ascendente do Bolsa Família. Juros menores ainda (2,2% na safra 2012/2013, muito abaixo da inflação) oferecem o Pronaf, direcionado a produtores rurais.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, "a escolaridade média da população de 25 anos ou mais de idade aumentou de 2002 a 2012, passando de 6,1 para 7,6 anos de estudo completos, sendo que 40,1% das pessoas dessa faixa etária alcançaram 11 anos de estudo ou mais. O incremento de escolaridade foi mais intenso para os 'mais pobres' - na classificação do IBGE -, cujo aumento foi de 58%". Graças à política de cotas, o número de negros nas universidades triplicou.

Em 10 anos, o Pró-Uni formou mais de 400 mil profissionais e aliviou a saúde financeira das faculdades privadas de todo país. O programa Ciência Sem Fronteiras levou 60 mil jovens para as melhores universidades do mundo. A proporção de jovens no ensino superior passou de 9,8% para 15,1%. O Pronatec já matriculou mais de 5 milhões em cursos técnicos de alto nível. De 1909 a 2002, o governo federal construiu 140 escolas técnicas no país. Em 12 anos, Lula e Dilma ergueram 365.

Na base, a revolução foi ainda maior. Em 2002, 1/3 das crianças da zona rural simplesmente não frequentava a escola. Desde 2009, o programa Caminho da Escola colocou 17 mil ônibus escolares em mais de 4 mil municípios. 15 mil são destinados às crianças do campo e o restante atende portadores de deficiência, como parte do programa Viver Sem Limite. Para as cidades ribeirinhas, o programa financia a compra de lanchas. Por baixo, isso significa condições diárias de acesso à escola para quase 2 milhões de crianças. Só a partir de 2010, o governo federal injetou R$ 825,3 bilhões de recursos em Educação e Saúde.

No último ano de gestão FHC, os gastos reais do governo federal na área da Saúde foram de R$ 24,735 bilhões. Na Educação, foram R$ 18,01 bilhões. Atualizados, estes valores não ultrapassariam R$ 47,6 bilhões na Saúde e R$ 34,6 na Educação. Somente no ano passado, durante o efervescer dos protestos contra a falta de investimentos na Educação do país, o governo federal destinou R$ 101,9 bilhões ao setor, quase 3 vezes mais do que o PSDB. Inciativa governista, o Plano Nacional da Educação garante 10% do PIB à Educação. No mesmo destino seguem os investimentos na Saúde.

Do ponto de vista econômico, o PSDB é melhor? Não é o que a história mostra. Para não perder a reeleição, FHC realizou o chamado "populismo cambial", que manteve de maneira artificial o câmbio fixo em 1998. Garantido mais 4 anos no poder, alterou a política cambial e jogou o país nas graças do FMI para pagar pela manobra do ano anterior.

Desde 2003, a economia brasileira cresceu 40,7%. O PIB, 27,7%. Neste mesmo período, a renda do trabalho formal dobrou e o número de empregos formais cresceu 65,7%. O BNDES virou protagonista na política de concessão de créditos a pequenas e grandes empresas. Em relação ao último ano de Fernando Henrique Cardoso no Planalto, o número de empregados na construção civil na gestão Dilma aumentou em 155%.

Segundo a Organização Internacional do Trabalho, enquanto o mundo destruía 62 milhões de empregos durante a crise global de 2008, o Brasil criava 10,5 milhões de empregos. A mídia ironizou a declaração de Lula, quando disse que a crise aqui era uma "marolinha"; sugeriu corte de gastos públicos; e Serra veio a público para dizer que, com as medidas de investimento anunciadas por Mantega, o Brasil adentraria o ano seguinte numa crise profunda.

Apesar da gritaria em torno do segundo trimestre consecutivo de crescimento negativo e ao contrário do que se diz, o Brasil não é a Venezuela. Isso quem disse foi o próprio ex-ministro das Comunicações de FHC e ex-presidente do BNDES, Luiz Carlos Mendonça de Barros, que explicou o momento: na verdade, é só agora que o país está pagando - e a um preço muito baixo - pela crise mundial.

Para manter aquecida a economia e impedir demissões, Lula aumentou - em vez de diminuir, como fez a maioria dos países - os gastos públicos e diminuiu - em vez de aumentar, como fez a maioria dos países - a arrecadação. Essa diferença o consumidor sentiu no bolso quando esteve no varejo e nas concessionárias. Com o IPI reduzido, o acesso a bens foi facilitado e o consumo permaneceu alto. O BNDES e os bancos públicos nunca expandiram tanto o crédito para o consumo e novos investimentos.

Mesmo com todas as previsões alarmistas, o IBGE anunciou que a inflação de julho foi de 0,01%, a mais baixa em 4 anos. Dilma fechou o ano de 2013 com a taxa acumulada em 5,9%. Apesar de todas as conquistas do Plano Real, FHC entregou Brasília para Lula com 12,53% de inflação, número registrado em 2002 pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo.

Há quem diga que o governo Lula aparelhou a máquina administrativa desde 2003, no intuito de empregar correligionários, amigos e parentes. A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico publicou um estudo sobre o caso. Na última edição de 2010 do Boletim Estatístico de Pessoal do Ministério do Planejamento, detectou-se a existência de 570 mil servidores civis federais na ativa, com pouco mais de 1% sendo ocupados por comissionados.

Com Lula, houve uma enxurrada de concursos públicos, é verdade. Mas principalmente para corrigir o congelamento de FHC, que abasteceu a Esplanada dos Ministérios com funcionários terceirizados, temporários e contratos via organismos internacionais de maneira irregular. No último de PSDB no Planalto, somente 30 servidores efetivos foram nomeados!

Entre 1995 e 1998, o número de funcionários públicos ativos civis caiu 10,5%. No segundo mandato, Fernando Henrique Cardoso permitiu outra queda, de 2,7%. Nos 8 anos de governo Lula, a taxa foi invertida e o Estado aumentou em 12,1% o número de funcionários.

Então a tese do aparelhamento está comprovada? Não. Primeiro, porque a proporção de funcionários públicos por habitante em 2010 permaneceu a mesma (5,09 por 1000 habitantes) que em 2000. Segundo, porque, apesar do aumento no número de comissionados (escolhidos por livre nomeação) entre 2002 e 2014, a proporção caiu discretamente, 0,1%.

É importante lembrar que 74% dos cargos comissionados hoje no Planalto são ocupados por funcionários já concursados, conforme o Decreto nº 5.497, assinado por Lula em 2005. Essa obrigação sequer existia antes.

Se o problema é a falta de qualificação destes funcionários, 78% deles têm ensino superior completo e, quando o cargo é de maior responsabilidade, o índice sobe para 96%. Ainda assim, o salário médio dos comissionados diminuiu: de R$ 6.155, em 2002, para R$ 4.296, em 2014.

Quanto aos Correios: essa carta do Aécio não chegou por osmose:


Para acabar com o sistema vicioso das "emendas parlamentares", única forma de celebração de convênios até FHC, o governo Lula criou o Siconv. O Sistema de Convênios permite que entidades privadas sem fins lucrativos ou públicas, governos de estados ou prefeituras se inscrevam para concorrer aos recursos destinados diretamente a eles. Hoje, qualquer cidadão pode acessar o mecanismo para conhecer quais programas estão disponíveis. PSDB há 20 anos, o governo do estado de São Paulo ainda não permite que prefeituras sejam proponentes dos seus recursos.

É também desde Lula que foram fortalecidas os mesmo criadas as legitimidades das conferências públicas. 2/3 das realizadas na história do país ocorreram a partir de 2003. Hoje, conselhos, congressos populares e conferências são mais responsáveis pela formulação de legislação do que o próprio poder legislativo. Aliás, descendem destes encontros, com representantes da sociedade civil e do poder público, as principais reivindicações que, algum tempo depois, viram leis. Foram deles que surgiram o Sistema Único de Saúde, o Sistema Único de Assistência Social e a Lei Orgânica de Assistência Social, por exemplo. Esta mudança de paradigma parece sutil, mas é responsável por uma das principais conquistas em qualquer rede democrática: a substituição de uma política de governo por uma política de estado.

A reação ao Decreto nº 8243 desnuda bem o que a mudança deste paradigma significa. Pra muitos, o desespero. A instituição da Política Nacional de Participação Social e o Sistema Nacional de Participação Social trouxeram à tona um discurso morto desde a queda do Muro de Berlim. Nas redes sociais e e algumas das colunas mais lidas de todo o país, a ação da presidente foi comparada aos sovietes bolcheviques revolucionários de 1917. No GloboNews Eleições de 10 de agosto, Arnaldo Madeira, coordenador da campanha de Aécio, fez referência ao conceito soviético para, dentre outras coisas, insistir na ideia de que o país não precisa de uma reforma política, mas de lideranças capazes de arrebanhar as multidões.

Se o problema dos governos do PT está na corrupção, talvez alguns números mostrem justamente o contrário. Foi FHC quem criou, mas foi Lula quem estruturou a Controladoria-Geral da União através da realização de concursos e da sua expansão. Em 10 anos, o órgão foi responsável pela expulsão de mais de 4 mil servidores com atos relacionados à corrupção, por acumulação ilícita de cargos, abandono de cargo ou inassiduidade habitual, procedimento desidioso, por participação em gerência ou administração de sociedade privada. Soube de um ou outro escândalo que tomou a capa dos jornais? Isso aconteceu muito provavelmente graças ao Portal da Transparência, também uma iniciativa governista. Também é do presidente Lula o decreto que regulamenta a vedação ao nepotismo no Executivo Federal.

E o Mensalão? Pois bem, é do próprio Procurador-Geral da República o relatório que gera a Ação Penal 470, como ficou conhecido o esquema de compra de votos no congresso federal em favor da base governista. 69 mil páginas, julgadas em 2012, sobre um caso ocorrido em 2005. Se o PT comprou o judiciário, como muitos ainda dizem, como explicar que o único macro-escândalo de corrupção que efetivamente deu condenação tenha ocorrido durante o seu mandato?

Nos tempos de Fernando Henrique Cardoso, até a Veja fez menção ao carinhoso apelido que recebeu o Procurador-Geral da República durante a gestão PSDB, o dr. Brindero: "engavetador-geral da República". Também pudera: SUDAM, SUDENE, Anões do Orçamento, mensalão da reeleição, SIVAM, etc. Nenhum deu em absolutamente nada. Quando apareceu o escândalo sobre o cartel do metrô em São Paulo, Aloysio Nunes, então senador - hoje candidato a vice-presidente com Aécio -, pediu a cassação do mandato do presidente do Cade, órgão responsável pelas investigações.

Aliás, também é do PSDB o modelo de referência para o mensalão petista. Batizado de "mensalão mineiro" pela imprensa conivente, o esquema de compra de votos em favor do PSDB em Minas Gerais aconteceu em 1998, também com o protagonismo de Marcos Valério, mas de longe sem a mesma estridência na cobertura midiática que veiculou os desdobramentos do petista, de 2005 até hoje.

O que eu quero dizer é que tudo bem se um governo corrupto comanda nosso país? Claro que não. Mas "medir" corrupção é algo que beira o impossível. O que se pode discutir é a maneira com que os governos trataram a corrupção, e neste quesito também há um abismo entre os governos petistas e a gestão do PSDB. A sujeira para debaixo do tapete, acumulada nos 8 anos de FHC, é algo absolutamente improvável no Brasil depois do desenvolvimento do poder judiciário e de órgãos de fiscalização promovido na última década.

Pode ser surpresa pros demais estados, mas a apatia da imprensa mineira não é novidade nenhuma pra quem conhece a relação de Aécio com órgãos de comunicação. Com as articulações da irmã, Andrea Neves, silenciou quase todos eles em Minas Gerais. Em junho deste ano, um jornalista teve a casa invadida, no Rio de Janeiro, depois de uma ação movida pelo senador.

A imprensa mineira também permaneceu quieta sobre a investigação de desvio de R$ 4,3 bilhões quando Aécio era governador do estado. Sem dar maiores explicações, este ano o procurador-geral de Justiça de Minas, Carlos André Bittencourt, arquivou o caso sob a alegação de que a promotoria não poderia processar um governador.

Em Minas Gerais, o novo governador teve que cortar às pressas o alto número de comissionados. Entre dezembro de 2003, primeiro ano de Aécio no estado, e janeiro de 2014, segundo do sucessor, o número de contratados sem concurso público aumentou em 92%.

O PSDB de Aécio e sua base aliada têm muito o que explicar: o aeroporto construído em propriedade particular do tio em Cláudio; a quase meia tonelada de cocaína no helicóptero dos filhos do senador Perrella; e os escândalos engavetados acima são apenas alguns deles.

***

É verdade que ainda há muito no que se avançar no Brasil comandado pelo PT. Com medo do conservadorismo religioso, Dilma recuou quando teve nas mãos o "kit anti-homofobia". Na campanha de 2010, sucumbiu ao denuncismo moral barato de que era favorável ao aborto para intensificar a campanha em igrejas e anunciar sua posição contrária à prática. Somente agora, em junho de 2014, voltou a se manifestar sobre o caso, sustentando o direito inequívoco de aborto por motivos "médicos e legais". Para garantir uma capacidade de geração de energia elétrica nunca antes vista no país, permitiu a usurpação de terras indígenas em pleno século XXI e adiou, mais uma vez, a demarcação de terras.

Além disso, junho de 2013 escancarou uma das maiores deficiências do governo federal nestes últimos 12 anos: é incapaz de se comunicar o suficiente com uma população diariamente massacrada por informações sobre os gastos públicos e a inoperância dos serviços públicos. Pode parecer apenas um anexo, mas a comunicação é parte vital de um governo atento ao bem-estar da população.

Demorou para o Planalto reagir às críticas contra a realização da Copa do Mundo aqui. Permitiu que os jornais chamassem presos políticos de SP e RJ de "presos da Copa", mesmo que a responsabilidade dos encarceramentos arbitrários fosse dos estados e não de Brasília. Assistiu apático 3 principais jornais do país estamparem que uma "obra inacabada da Copa" havia desabado e matado um em Belo Horizonte, ainda que a contratação da empreiteira fosse da prefeitura.

Enquanto isso, Aécio Neves reage à inevitável derrota com o comportamento digno de uma metralhadora giratória que já nem esconde mais a ausência de um projeto político para o país. Quer mesmo é abocanhar o voto antipetista que toma conta das redes sociais e nada além disso. Marina engasgou no discurso de uma "nova política" que ela própria não sabe dizer o que é. Se vai mesmo conceder autonomia ao Banco Central, privilégios aos ruralistas, ninguém sabe, e provavelmente ela também não.

Confesso que a honestidade de Luciana Genro e Eduardo Jorge me encanta. Mas ela não está distante de uma realidade possível para todos os nanicos, quando ser sincero é uma opção pra quem nada tem a perder. Além do mais, suas principais propostas giram em torno de uma pauta que é própria para o legislativo, e não o executivo: descriminalização de aborto e drogas, casamento igualitário, criminalização da homofobia e revisão da dívida pública.

Apesar de ter a maior taxa entre os eleitores convictos (74%), de acordo com o Datafolha, Dilma está atrás de Marina entre os eleitores de 16 e 24 anos, uma geração que não conheceu aquele país anterior a 2003 e faz pouca ideia do que ele significa. E esse Brasil eu não quero nunca mais.

E é por isso que no dia 5 de outubro meu voto é de Dilma Rousseff. Porque reconheço que os avanços sócio-econômicos e também políticos do país são grandes demais para serem interrompidos. O que se fez aqui, dentro dum regime democrático, dezenas de revoluções não conseguiram. O Brasil de Lula e Dilma não é, ainda, o que os mais de 200 milhões de brasileiros merecem, mas é o melhor Brasil que já se viu. E é por ele que a minha memória não vai falhar.

Abraços,
Murilo


* Artigo originalmente publicado em 11 de agosto de 2014, mas atualizado com a alteração do cenário eleitoral com a morte de Eduardo Campos e o acréscimo de informações importantes para descrever o Brasil destes últimos 12 anos.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Ensino de Cultura na sala de aula: uma responsabilidade do sistema de ensino

Antes o mundo era pequeno 
Porque Terra era grande 
Hoje mundo é muito grande 
Porque Terra é pequena 
Do tamanho da antena parabolicamará 
Ê, volta do mundo, camará 
Ê, ê, mundo dá volta camará 

(Gilberto Gil, Parabolicamará)

por LUIZA SALLA


Deparamo-nos com um retrato muito intrigante ao observar as escolas públicas brasileiras na atualidade. É um misto de culturas, de opções de lazer, de oportunidades (ou a falta delas), de interesses... Um misto resultante das diversificadas origens e realidades que cada indivíduo ali possui. 

Na escola muitas vezes se trabalha a diversidade cultural em se tratando de outros povos e outros países, até mesmo de outras épocas, mas muitas vezes as pessoas que estão ali desconhecem, ou pouco sabem, a respeito de sua própria cultura. Eles conhecem a cultura comercial, a chamada cultura de massa, pois ela está em todos os lugares: tocando na casa, em carros de som, aparecendo na televisão, sendo usada como musiquinha de político em época de eleição. E, sem dúvida, ela realmente faz parte da atual criação cultural brasileira. 

Mas e o resto? Digo, e TODO e resto? A cultura brasileira é muito mais do que apenas o que está fazendo sucesso momentâneo na TV. 
“O acesso à cultura é um direito básico de cidadania” (Gilberto Gil) 
No discurso do ministro Gilberto Gil na solenidade de transmissão do cargo, em Brasília, em 2 de janeiro de 2003, ele define cultura “como tudo aquilo que, no uso de qualquer coisa, se manifesta para além do mero valor de uso. Cultura como aquilo que, em cada objeto que produzimos, transcende o meramente técnico. Cultura como usina de símbolos de um povo. Cultura como conjunto de signos de cada comunidade e de toda a nação. Cultura como o sentido de nossos atos, a soma de nossos gestos, o senso de nossos jeitos”. 

Nossa realidade atual é que grande parte população, incluindo os jovens que frequentam as escolas públicas e privadas do país, está tão inserida na cultura de massa que se esquece, e até desconhece, as outras formas de cultura que formam a história de seu país. A consequência disso é o esquecimento da própria história. 

Como a maior parte da sociedade tem em comum a passagem pela escola, é de se imaginar que seria responsabilidade da mesma criar maiores condições de acesso aos bens culturais. O indivíduo que ali se encontra já tem suas próprias referências culturais, portanto uma das funções do órgão seria a de ampliar o repertório do mesmo, fazendo com que ele tenha ferramentas para enfrentar as mais diversas situações ao sair dali. 

Estudiosos comprovam que toda ação pedagógica tem uma intenção, ou seja, não há como a escolha dos conteúdos que fazem parte do currículo escolar seja neutra. De acordo com SILVA (SILVA, T. T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004), o currículo escolar está relacionado diretamente com o conhecimento que se “pretende” ensinar a um grupo, logo, ensinar ou negligenciar o ensino de cultura nas escolas públicas seria também uma questão política. 

Atualmente o ensino de cultura é realizado intrinsecamente, dentro das demais disciplinas. Alguns profissionais entendem que a responsabilidade, deste modo, teria passado para os professores de Língua Portuguesa e Estrangeira. Isso se dá porque ao ensinar língua e literatura o professor está também transmitindo a evolução da língua, as alternâncias culturais e as transformações sociais pelas quais o país e sua escrita passaram durante a história. Contudo, tais informações também são transmitidas pelos profissionais de artes, história, geografia e até mesmo da área de exatas. Não importa a disciplina, o importante é demonstrar que uma sociedade se molda aos padrões culturais a que é submetida e que isso implica no que as pessoas têm apreciado como cultura nos dias de hoje. 

“Cultura = civilização” – preconceitos e estereótipos 

O preconceito relacionado à diversidade cultural das pessoas ainda é muito grande. Há uma crença de que quem adquire certos conhecimentos, quem tem contato com certas formas artísticas culturais, e conhecimento acerca delas, seria, de certa forma, superior intelectualmente. Existe um “padrão cultural” que é cultuado pelos mais diversos tipos de pessoas como o “aceitável”, o que é muito prejudicial à sociedade como um todo. 

Os estereótipos e preconceitos que envolvem o “nível cultural” de uma comunidade foram intrínsecos nas sociedades desde há muito tempo e, até os dias de hoje, atividades como ler um livro considerado clássico da literatura ou decifrar os prazeres da música erudita são consideradas atividades culturais superiores do que ler um best-seller, ver uma novela ou dançar um funk, elementos típicos da cultura de massa atual. O assunto é complexo. É certo que a busca por conhecimentos complexos, o interesse pelo aprendizado e pela educação, possui seu valor e realmente eleva, durante todo o período em que a pessoa se dedica a adquiri-lo, o nível intelectual, crítico e de conhecimento de mundo de uma pessoa. Por outro lado, nós vivemos num país onde a maior parte da população depende da boa vontade de ações governamentais para adquirir educação, e, infelizmente, o governo não se mostra muito interessado em enriquecer a população intelectualmente. Portanto, nos dias de hoje, concepções como essa influenciam de forma muito negativa, a até mesmo destrutiva, no futuro da sociedade, tanto se tratando de realização pessoal como profissional. 

É função do currículo, portanto, criar condições para que a escola discuta as relações de poder que envolvem diferentes tipos de conhecimento conscientizando o aluno sobre tudo o que está em jogo, já que vivemos em uma sociedade que ainda rotula e criminaliza a diversidade. Porém é importante deixar claro que essa “conduta” precisa acabar, fazendo com que a diversidade seja vista pela beleza que tem, pautando-se na importância das diferenças culturais e, principalmente, no respeito a elas. 

“Nossa querida cultura nacional” 

É possível ver implícito dento de muitos brasileiros a crença de que as músicas, os filmes, a língua, os costumes, as vestimentas, a literatura e tudo o mais que vem do exterior é de uma superioridade imensa em relação à nossa. 

Esse é um estereótipo ainda muito disseminado, infelizmente, pelos próprios brasileiros. A consequência disso é simples e catastrófica: está-se cultuando a negação da própria identidade. 

O ensino de cultura nas escolas deve ter, portanto, mais essa missão: a de exterminar o mito de que tudo que vem do exterior é melhor, e ensinar aos indivíduos a valorizar a produção cultural nacional, aquela que faz parte da sua história, aquela que moldou o que ele é hoje, e que, inclusive,muitos estrangeiros pagam para ver, ouvir e ler. 

Professor como membro social mais experiente = exemplo 

O professor deve o tempo todo servir de mediador, orientador e principalmente de exemplo. Por isso é muito importante que este tenha em mente que deve evitar transmitir uma possível carga de estereótipos e preconceitos que ele mesmo possa ter. 

O ensino da cultura nas escolas leva a resultados que transpassam as paredes da sala de aula, pois um indivíduo sem consciência da própria cultura não tem respeito nem esperança pela própria pátria, o que leva a uma situação de comodismo e alienação. Resumindo: ciente de sua cultura, e principalmente da história da mesma, os indivíduos passam a valorizar e respeitar a diversidade, tornando-se alguém menos influenciável e mais ativo criticamente na sociedade. 

Ampliar o repertório cultural do aluno possibilitará o aprimoramento de tudo o que ele construirá em seu futuro e, consequentemente, no futuro da nação. Portanto, o ensino de cultura é hoje mais do que um apêndice disciplinar, mas uma responsabilidade política e social do Sistema de Ensino. 


* Luiza Salla Marchiori, 24 anos, é formada em Letras - port/esp pelas Faculdades Integradas de Itararé. Atuou como professora durante o tempo em que cursou especialização em Metodologia da Língua Portuguesa e Estrangeira, nas áreas de Língua Portuguesa, Espanhol, Filosofia e Sociologia. Atualmente trabalha na redação de tradicional jornal itarareense, atuando nas áreas de reportagem, pesquisa e redação.