terça-feira, 16 de setembro de 2014

A questão latifundiária no Brasil: sangue, preconceito e revolução

por LUIS FELIPE GENARO

A mídia independente Resistência Camponesa, longe dos holofotes da velha imprensa, noticiou na última segunda-feira (08/09) um fato que, de tão recorrente, vem beirando a banalidade. Há semanas, pistoleiros e jagunços de um latifúndio em Rondônia, município de Chupinguaia, vem sequestrando camponeses do acampamento Gilson Gonçalves. Daniel e Paulo, ambos desaparecidos, eram membros da Liga dos Camponeses Pobres de Rondônia e Amazônia Ocidental (LCP). A luta pela terra, no entanto, continua.


Notam-se na História brasileira muitas permanências e poucas rupturas efetivas. Quando essas ocorrem, os donos do poder se incomodam de tal forma que sufocam toda e qualquer tentativa ou ação de rebeldia e insurgência, seja ela individual ou coletiva. Se existe uma permanência histórica que está presente desde o trágico choque entre portugueses e indígenas há 514 anos, ela pode ser sintetizada no que chamamos questão latifundiária

O advogado e historiador Pedro Brasil Bandecchi, em plena agitação política no início dos anos 1960, redigiu um pequeno livreto chamado Origem do Latifúndio no Brasil. Nele somos impelidos a regressar no tempo para compreender uma questão premente nas discussões de sua época, ainda que estranhamente contemporânea. 

Para Bandecchi, a questão agrária no país, extremamente desigual, inicia-se durante a colonização europeia. Primeiro, há a ocupação – ou o que Darcy Ribeiro chamaria invasão – de portugueses nos sertões e regiões plenamente habitadas por milhares de tribos e pequenas confederações indígenas. “O índio, que acabou cedendo [ou morrendo], se opôs à imediata conquista da terra. Entre os naturais, não havia a propriedade da terra, que era comum às tribos todas [...]”, explica o advogado. 

A coroa portuguesa, temendo a invasão, agora de outros europeus, lança aos mares colonos dispostos a produzir em uma terra na qual, em sua concepção eurocêntrica, não havia habitantes. O fato é que o genocídio e a escravização de índios permaneceriam constantes nos primeiro séculos de ocupação. 

“A terra pertence a quem cultiva. Se o direito português encontra suas melhores raízes na Antiga Roma, o direito brasileiro origina-se daquele. A história do Brasil territorial começa em Portugal. É no pequeno reino peninsular que vamos encontrar as origens remotas de nosso regime de terras”, afirma Bandecchi. 


Através da Lei das Sesmarias, foram distribuídas enormes faixas de terra para “pequenos notáveis” virem ao Brasil e cultivarem o que desse para ser cultivado. Inicia-se o que a historiografia chama tradicionalmente período das capitanias hereditárias. Das capitanias, finalmente, surgiram os engenhos, os grandes latifúndios e uma aristocracia agrária, se é que podemos assim intitulá-la, que lamentavelmente, e com diferentes roupagens, está presente até os nossos dias. 

Afinal, a terra não é para quem cultiva? A distribuição de grandes propriedades que descumprem sua função social não está em nossa Constituição Federal? Por que a luta pela terra é tão criticada e estigmatizada pela imprensa nativa e pelos donos do poder? Em teoria, os poderosos aceitam uma Reforma Agrária plena. Na prática, a História nos mostrou o que acontece quando uma liderança se rebela e acelera o processo em questão – um golpe civil-militar. 

A esquerda brasileira contava com que os governos de Lula e Dilma levassem a cabo a Reforma Agrária, por ser uma das bandeiras históricas do Partido dos Trabalhadores (PT). Isso, como se sabe, não aconteceu. Gilmar Mauro, um dos dirigentes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), afirma que “o governo Dilma em termos da Reforma Agrária não fez nada. O governo Dilma se compara ao período militar. Como é que vai fazer a revolução se não estiver junto com o povo e com a classe trabalhadora?”, indaga o sem-terra. Em termos de programas sociais e outros avanços, Gilmar Mauro não pestaneja e elogia os governos petistas. Mas não deixa de criticá-los quando necessário. 

Analisando o período Lula, o historiador Paulo Henrique Martinez, em seu artigo O Partido dos Trabalhadores e a Conquista do Estado, afirma que “eleito para transformar o país, sua prática política e administrativa [a de Lula] reiteraram padrões convencionais e arraigados na vida política nacional e contemplou os interesses mais entranhados do capitalismo no Brasil”. Complacente com o agronegócio, os famigerados ruralistas e pequenas oligarquias regionais, o partido, no poder, corroeu um de seus principais pilares de sustentação.


A relação entre a terra e o poder político é e sempre foi estreita. O renomado intelectual brasileiro Raymundo Faoro, em consonância com Pedro Brasil Bandecchi, afirmou décadas atrás que desde a invasão portuguesa “a realidade americana torceu o conteúdo da lei, transformando a terra, de instrumento régio da colonização e povoamento, em garantia permanente do investimento agrícola. De outro lado, dentro da mesma corrente, a sesmaria, meio jurídico para apegar a terra à capacidade de cultivo, serviu para consagrar as extensões latifundiárias. Tudo por obra do açúcar e da expansão do gado, afirmando a tendência, no plano político, da autonomia do potentado rural”. 

Em suma, a luta pela distribuição de enormes faixas de terra não produtivas e concentradas nas mãos de poucos permanece um dos objetivos da Esquerda, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, assim como de outros movimentos sociais brasileiros. Apenas com a plenitude da Reforma Agrária – realizada mediante poder popular e por ele apenas – findarão os eternos conflitos no campo, conflitos esses que ainda se assemelham à vida colonial brasileira. Escravidão, assassinatos, sequestros, entre outras barbáries cessariam e, finalmente, pequenos produtores e camponeses teriam a chance de ter um pedaço de terra para plantar. 

Enquanto escrevo rememoro a harmoniosa poesia de Chico Buarque ao cantar o trágico hino de uma luta que, do contrário que muitos pensam, não está ganha. Por enquanto a parte do latifúndio que cabe ao pequeno produtor, ao indígena e ao camponês, é a cova. 

Uma cova com palmos medida. 

Outras leituras: 

O Povo Brasileiro, por Darcy Ribeiro. 
Os Donos do Poder, por Raymundo Faoro. 
A Origem do Latifúndio no Brasil, por Pedro Brasil Bandecchi.

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