terça-feira, 30 de setembro de 2014

Sons e ruídos: A MPB, o cenário musical e o Brasil contemporâneo

por LUIS FELIPE GENARO

“Em um momento em que tudo fica fácil; que gravar música é fácil, que produzir música é fácil e que a internet divulga com a maior facilidade, é de se imaginar que as pessoas consumam o melhor. Quanto maior cresce a indústria cultural e as facilidades, pior é a música”, constatou o maestro, músico e fundador da Amazonas Filarmônica, Júlio Medaglia. Frente ao provocador Antônio Abujamra, ele continuou: “essa música sertaneja que ouvimos durante a década de 90 toda não passou de um bolerão de puteiro. [...] E o falso pagode também, que persistiu durante tantos anos até recentemente, todo ele junto não vale uma pausa da música de Nelson Cavaquinho”. 


Em sua crítica ferina, Medaglia aponta para questões interessantes. De fato, nós vivenciamos hoje uma maior facilidade na busca e deleite de sons e ritmos que durante as décadas de 1950, 1960 e 1970 foram totalmente impensáveis. Graças à globalização temos uma maior facilidade para a gravação de músicas, vídeos e sons, transmitindo-os para quem quisermos e em qualquer lugar do mundo. Por outro lado, nosso cenário musical recente, tendo como base a generalizante Música Popular Brasileira (MPB), mostra-se, contudo, em crise. Senão em crise, já em plena decadência. 

Na gestação do campo artístico-musical brasileiro, e nela a MPB, relações conflituosas foram constantes. Da erudição brasílica de Villa-Lobos aos sambistas Noel Rosa e Pixinguinha, da Bossa Nova de João Gilberto e Tom Jobim até as porra-louquices da dita Tropicália, rupturas e tensões foram impulsos implícitos para o surgimento de melodias e canções memoráveis – tanto criativas como combativas. Para o historiador Marco Napolitano, “ao longo deste ciclo, surgiu e se consagrou a expressão Música Popular Brasileira (MPB), sigla que sintetizava a busca de uma nova canção que expressasse o Brasil como projeto de nação idealizado por uma cultura politica influenciada pela ideologia nacional-popular e pelo ciclo de desenvolvimento industrial, impulsionado a partir dos anos 50”. 

Neste ínterim, já no início da década de 1960, tomado à consciência de que éramos um país terceiro-mundista – conceito já descartado pela geopolítica – ou dito subdesenvolvido, na sua grande maioria uma população politicamente desmotivada e presa fácil para as garras estadunidenses, a União Nacional dos Estudantes (UNE) lançava o disco “O Povo Canta”, almejando alcançar um público abrangente, das periferias à classe médio-baixa, nelas incitando um espírito crítico através do humor. A mudança e a transformação pareciam, nos corações e mentes de artistas ligados à esquerda, uma realidade que poderia ser facilmente alcançada. 


Em 1º de Abril de 1964, entretanto, caía João Goulart. Com ele, foi-se todo um grupo de intelectuais e políticos que visava reformar radicalmente as principais estruturas da nação. A partir dali, o Exército brasileiro aliado a setores conservadores e reacionários tomaria as rédeas do país, perseguindo, torturando e silenciando de forma brutal todos os seus opositores. Um dia que duraria 21 anos. 

Para Napolitano, naquele período o “ouvinte padrão de MPB, o jovem de classe média com acesso ao ensino médio e superior, projetou no consumo da canção as ambiguidades e valores de sua própria classe social. Ao mesmo tempo, a MPB, mais do que reflexo das estruturas sociais, foi um polo fundamental na configuração do imaginário sócio-político da classe média progressista submetida ao controle do Regime Militar”. 

Exemplo disso foi a canção “João da Silva” (1961), de Billy Blanco, componente do disco O Povo Canta. Nela, o fictício cidadão João da Silva usa e abusa de marcas e produtos estrangeiros, consome filmes, vestimentas e alimentos internacionais (“chiques”) e vive alienado das principais questões econômicas e políticas brasileiras, sendo “tapeado desde as 5 da manhã”. 

Nos palcos e festivais, Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Elis Regina, Gal Costa, entre tantos outros, brilhavam, compunham e cantavam de forma a abalar tudo o que até aquele momento estava posto. “As canções de MPB surgiram sendo objetos híbridos, portadores de elementos estéticos de naturezas diversas, em sua estrutura poética e musical”, afirma Napolitano. As críticas a uma sociedade desigual e elitista, baseada no esbanjamento e consumo de objetos caros e finos, ficou ao encargo de Bethânia com a canção “Pano Legal/Café Soçaite” (1968), e Elis com “Alô, Alô, Marciano” (1980). 


O embate contra a ditadura, que gradualmente se intensificava, recaiu principalmente sobre Chico, Gil e Milton Nascimento, que passaram a compor e cantar canções de resistência e protesto. A canção “Funeral de um Lavrador” (1966), de Chico, composta em conjunto com João Cabral de Melo Neto, por exemplo, denunciava as mazelas do campesinato brasileiro e o poder atroz dos grandes latifundiários. “Cálice” e “Apesar de Você”, ambas da década de 1970, também fizeram grande sucesso, incitando a ira dos censores militares. 

Sabemos que desde a era dos festivais, depois a redemocratização e os anos que se seguiram, o Brasil mudou bastante. Vivemos um tempo de pluralidades, mesmo que muitas vezes elas não sejam devidamente respeitadas. Discordo do maestro Júlio Medaglia quando critica as facilidades de se buscar e consumir o “melhor” nos dias de hoje, inferiorizando outros estilos e ritmos musicais. Nota-se também que suas assertivas não estão inteiramente equivocadas. A cada dia nascem novos MC’s e duplas sertanejas universitárias embalando singles quase sempre ruidosos, desconexos, vazios e completamente sem harmonia. Cantam amores efêmeros, excitação, baladas – e só. Longe de mim ser um voraz moralista ou impávido censor, mas reflito sempre que posso: algo parece estar errado. 


Quando se fala na decadência do cenário musical brasileiro o assunto resume-se logo em preconceito. Não gosta de funk ostentação? Preconceituoso. Não gosta de sertanejo? Preconceito. Creio que as coisas não funcionam dessa forma. Há singularidades sociais no funk, estilo com grande apelo popular, e questões importantes que nele transitam. Sabemos que generalizações são sempre riscos iminentes. Quer uma prova? O que dizer do “funk de protesto” composto por um garoto da Zona Sul de São Paulo, MC. Garden? Minha revolta aflora, por exemplo, quando o Ministério da Cultura (MinC), através da Lei Rouanet, repassa 4,1 milhões de reais para uma turnê de shows de Luan Santana. Milton Nascimento recebe apenas 957 mil. Reflito até que ponto a brutal indústria cultural parece moldar nosso recente cenário musical. 

Enquanto a massificação cultural marcha a todo vapor – forte aspecto da modernidade analisado por Theodore Adorno e Max Horkheimer, intelectuais ligados à Escola de Frankfurt – as “canções-produto” deste novo tempo integram uma lógica perversa que visa, ao mesmo tempo, padronizar indivíduos e gerar lucro para os detentores do poder econômico. Aquela velha MPB, coitada, parece arrastar-se com seus esqueletos antigos, discos empoeirados e ícones de uma nova geração pouco conhecida. 

Hoje, em crise, transformação ou caindo à ladeira, inquestionável é que o batidão estridente de Mr. Catra parece ter mais valor que as vozes de Bethânia, Gil e Chico juntas. Resta-nos... paciência. 

Referências: A música popular brasileira (MPB) dos anos 70: resistência política e consumo cultural, por Marcos Napolitano. 

Um comentário:

  1. Que o Mr Catra tem mais valor comercial que Bethânia, Gil, Chico, é fato incontestável. Outra coisa que enfraquece a cena nacional é a preferência por música em inglês. Com a gente mesmo, sempre tem uns amigo roquero, ~ tão bem instruídos e cultos ~ que abominam a nossa música. E, veja bem, abominar é bem diferente de não gostar, de ter outras preferências.

    Mas acho que ao invés de lamentarmos isso tudo, deveríamos disseminar essa parte da música brasileira que tanto gostamos e, principalmente, conhecer e apoiar as cenas da nova MPB que estão rolando. Tem pra todos os gostos: samba, rap, bossa, pop, rock, blues, jazz, afrobeats,e mais o que pudermos misturar.

    Hoje, pode-se afirmar que há muito mais artistas bons do que naquela época, com toda certeza. Mais que o dobro, se pá. Só que não é tão interessante para a mídia divulgá-los... Então cabe a nós, chatos que somos pra ouvir música, ajudar fortalecer a nossa cena.

    :)

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