quarta-feira, 15 de outubro de 2014

A economia moral da multidão brasileira no século 21

Travestida de racionalismo, a ideia que sustentam FHC e a nata de "analistas" políticos do país carrega a arrogância que tem sido a tônica da campanha de Aécio Neves, que não admite o voto no Partido dos Trabalhadores sob qualquer outra perspectiva pro além da multidão faminta e ignorante que se vende por um sustento



Em 1971, Edward Palmer Thompson chocou a historiografia com um artigo revolucionário. "A economia moral da multidão inglesa do século XVIII" não foi apenas uma reação aos modelos oficiais de interpretação das revoltas populares, mas também às lentes das grandes narrativas históricas do estruturalismo e do marxismo, indiscutivelmente as mais influentes até então.

Militante convicto, Thompson rompeu com o Partido Comunista em 1956, pouco depois do XX Congresso da União Soviética, quando Nikita Kruschev anunciou ao mundo todos os crimes cometidos por Josef Stálin sob o comando da maior locomotiva socialista do mundo entre 1924 e 1953. Ao lado de Christopher Hill, Eric Hobsbawm, Rodney Hilton, Raymond Williams e outros, fundou a Nova Esquerda Inglesa, geração de marxistas pouco identificados com a historiografia tradicional. 

De acordo com Thompson, há um problema crucial na visão comum que se tem sobre os famosos "motins da fome" na Inglaterra do século XVIII: pressupõe-se que as manifestações populares fossem reações nervosas, algo espasmáticas, da ausência de comida. Quer dizer, estavam mais pra um espirro do que pra um ato convicto de consciência. 

Fruto da retórica, essa interpretação negligencia os principais dados acerca dos movimentos neste contexto. Primeiro, mesmo com o aumento no preço do pão, os trabalhadores não deixavam de consumi-lo. Abriam mão, inclusive, de outros gêneros alimentícios para a sua compra em casos de dificuldades financeiras. E segundo, todas as rebeliões foram antecedidas por uma ou mais medidas em conflito com o direito consuetudinário em vigor nos vilarejos duma Inglaterra então dividida em 2 mundos: aquele rural, dos costumes medievais de produção e comércio; e aquele urbano, tomado pela onda liberal trazida pela industrialização.

Thompson percebeu que havia uma distância entre os novos mecanismos legais de liberalização da economia e os hábitos tradicionais da multidão. A sede pelo lucro no mercado aos poucos tirava do Estado seu papel de protetor dos consumidores. Havia, por exemplo, a proibição da venda antecipada ou à granel de comida nos armazéns. O objetivo era impedir a especulação de produtos, o exagero dos lucros e a dificuldade de acesso dos mais pobres aos bens. Aliás, a legislação previa que os desafortunados tinham o direito de comprar primeiro o que estava presente nos estoques.

Com o avanço do século das luzes e das máquinas, o mercado passou a se tornar cada vez mais independente e, a multidão, enraivecida. Os motins passaram a se multiplicar. Com o desrespeito aos valores tradicionais que norteavam a relação de compra e venda, os trabalhadores passaram a destruir revendas e ameaçar proprietários. Mesmo juízes ficaram ao lado da desordem e inocentaram acusados. Os padeiros que misturavam matérias-primas pra empobrecer a estrutura do pão eram condenados pela justiça popular e pela formal.

O que Thompson conseguiu com o resultado desta pesquisa é fascinante: mais do que voz, deu à multidão consciência. Atribuiu a ela papel de protagonista onde atuava apenas como figurante numa trajetória que nunca foi sua.

AS ELEIÇÕES E O PRECONCEITO NOSSO DE CADA DIA - Já nem é mais novidade. Toda eleição desde o ciclo iniciado em 2002 pelo PT é acompanhada de manifestações xenofóbicas, racistas e elitistas. Mayara Petruso ficou mundialmente conhecida em 2010 depois do tweet publicado logo após a confirmação da vitória de Dilma Rousseff no 2º turno contra José Serra: "Nordestisto [sic] não é gente. Faça um favor a Sp: mate um nordestino afogado". A mensagem foi rapidamente multiplicada, Mayara foi denunciada pelo Ministério Público Federal e condenada pela justiça a 1 ano e meio de prisão, mas teve a pena convertida para serviços comunitários.  

Em 2014, a onda tomou vigor, e eu não me refiro aqui ao já conhecido chorume de internet, produzido em tonel todos os dias, mas às mais "sofisticadas" referências. Fernando Henrique Cardoso declarou que só votam no PT os desinformados. Na GloboNews, a jornalista Cristiana Lôbo disse que o partido governista precisa "aprender a lidar" com a ascensão do eleitor mais escolarizado. Pelo Twitter, a também apresentadora do principal canal de notícias da Globosat, Leilane Neubarth, disse que a votação expressiva do Partido dos Trabalhadores no Piauí e a inexpressividade em São Paulo "dão o que pensar".


Dão mesmo. Essa reportagem da BBC mostra o que significaram os últimos 12 anos no Piauí pra muito além do Bolsa Família: ali estão as várias comunidades quilombolas finalmente reconhecidas pelo governo em 2007; o Luz Para Todos; o Caminho Para Escola; o Seguro Safra; o Brasil Sem Miséria. São povoados inteiros com uma cisterna para cada residência, com sua manutenção garantida agora pelo exército. O significado disso a matéria explica:
Nas secas mais severas, os reservatórios são reabastecidos pelo Exército, sem a intermediação de políticos locais. A prática golpeou a chamada indústria da seca, pela qual autoridades trocavam favores por votos.
Antes das cisternas, todas as mulheres levantavam de madrugada pra ir buscar água longe depois de um  verdadeiro trabalho de garimpo. Antes do crédito aos pequenos produtores, o agricultor da região vivia em sistema de semi-escravidão pra conseguir manter o sustento básico diário da família.

Pra quem acompanhou a trajetória do PSDB nestes últimos 12 anos, assistir ao desespero de Aécio Neves em assumir a paternidade do Bolsa Família e a continuidade dos programas sociais em vigor pode provocar um misto de impressões contraditórias: ao mesmo tempo em que o presidenciável diz serem levianas as acusações de Dilma em relação à postura do partido sobre o tema, Álvaro Dias declara que o principal programa de distribuição de renda do país estimula a preguiça e o site oficial do PSDB abre um editorial intitulado "Bolsa Esmola", assim como se refere boa parte do seu eleitorado nas redes.


Pode-se considerar no mínimo ousada a declaração de Fernando Henrique Cardoso sobre a relação entre petismo e desinformação. No seu governo, não havia ProUni, Ciência Sem Fronteiras, construção de escolas técnicas ou universidades e a escolaridade média da população era de apenas 6,1 anos. Eram 15 milhões de analfabetos, cerca de 11% da população. Foi nesta configuração que o ex-presidente venceu no 1º turno, inclusive. Em 2014, aliás, ocorreu a primeira eleição em que o número de eleitores com Ensino Médio ou mais foi maior do que o de eleitores com Ensino Fundamental ou menos.

Travestida de racionalismo, a ideia que sustentam FHC e a nata de "analistas" políticos do país carrega a arrogância que tem sido a tônica da campanha de Aécio Neves, que não admite o voto no Partido dos Trabalhadores sob qualquer outra perspectiva pro além da multidão faminta e ignorante que se vende por um sustento.

Uma pena que, apesar de tão informada, essa gente não tenha conhecido Thompson.


Abraços, 
Murilo

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