terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Os conflitos e a crise na Ucrânia

Sintoma do fim das democracias?

por LUIS FELIPE GENARO

Sempre que posso, em textos e entrevistas, observo o renomado intelectual estadunidense Noam Chomsky se esforçando ao máximo para mudar o que a maioria pensa sobre a grande potência econômica e militar da atualidade: os Estados Unidos da América. Nas palavras do acadêmico, aplicadas com destreza em nossa recente conjuntura, tanto os EUA como o Reino Unido e países da União Europeia podem ser caracterizados como "state-sponsered terrorism" – Estados dito “democráticos” que tutelam e pactuam, a partir de seus interesses geopolíticos, facções e grupos terroristas ao redor do globo. Para Chomsky, os Estados Unidos da América, principalmente, tornaram-se um “leading terrorist state”, peculiaridade que, para muitos, parece desconexo da realidade superficial transmitida pela grande mídia. Os Estados Unidos, o grande modelo de democracia, são um estado terrorista. 


Como se sabe, a crise na Ucrânia se arrasta faz mais de um ano. Assim como a Síria de Bashar al-Assad – padrão que não podemos deixar de comparar – a região tornou-se um tabuleiro movediço, onde peças notórias disputam o controle político-militar do território e o futuro do Estado ucraniano. Não são apenas peças internas. Peças externas tomaram as rédeas da situação desde o início das manifestações, em 2013. Devido aos esforços constantes da grande mídia internacional – as imprensas-empresas do Ocidente – compreender de forma totalizante o conflito nas suas mais diferentes nuances, além de custoso, vem tornando-se um trabalho inviável. 

De fato, o presidente democraticamente eleito Victor Yanucovych, em novembro daquele ano, havia tomado a decisão de tecer relações mais próximas com a Rússia ao invés de estreitar laços, já gastos, com a União Europeia. Se houve pressão financeira de Moscou ou não, é certo que centenas saíram às ruas pedindo a queda de Yanucovych. Para o Ocidente, foi este o momento certo de agir. 

Qual era a narrativa propagandística da grande mídia? “Almejam os manifestantes relações mais profundas com a União Europeia”. Àqueles que assistiram e continuam a assistir aos grandes jornalões da noite, ou abriram as páginas dos mais prestigiosos periódicos, os manifestantes pró-União Europeia foram taxados como “pacíficos”, com “objetivos claros” e reclamando por “mais democracia”. Sabe-se, no entanto, que o contingente mais influente da oposição ao presidente Yanucovych era e permanece sendo uma coalizão de políticos fascistas, xenófobos, racistas, e nada mais, nada menos, que grupos neonazistas. 



O mais proeminente entre esses grupos de oposição é o partido ultranacionalista Svoboda. Ainda em 2012, antes da crise, a BBC publicava uma nota em seu portal online a respeito do crescimento vertiginoso do partido no parlamento ucraniano. Com o aval de uma bancada poderosa de 37 deputados, membros do Svoboda, de tempos em tempos, atacam verbal e fisicamente judeus, estrangeiros, homossexuais, “comunistas”, etc. O crescimento de partidos e grupos de extrema-direita na Ucrânia não é um fato isolado. Na França, na Itália, na Grécia e noutros países da União Europeia, discursos conservadores afloram, crescem e se espraiam com rapidez. Os alvos são inúmeros: gays, muçulmanos, negros, moradores de rua, ciganos, etc. 

Em 22 de fevereiro de 2014, Victor Yanucovych caiu. O presidente interino, Oleksandr Turchynov, prometeu intenso diálogo com as forças pró-Rússia e também com Moscou, mas antes de qualquer coisa, com lideranças da União Europeia. De acordo com Solange Reis, coordenadora do Observatório Político dos EUA (OPEU), “a tendência é a gente olhar isso como uma manifestação popular, uma iniciativa popular para mudar o regime, mas as forças políticas que estão movimentando as manifestações desde dezembro, são forças que vêm sendo plantadas há muito tempo e que têm forte influência de países ocidentais, da União Europeia e dos Estados Unidos”. 


Para grupos de extrema-direita, a Ucrânia é e seria apenas para ucranianos. Como a Alemanha, nos tempos de Hitler, era e deveria ser apenas para alemães “puros”. Em inúmeras regiões, como a Criméia, este nacionalismo radical, violento e até fatal, começou a incitar tensões separatistas, e o conflito entre os pró-Rússia e pró-União Europeia vem se acirrando de forma jamais vista. 

Em um recente e ácido artigo, “À sombra de uma terceira guerra mundial?”, John Pilger não poupou palavras para expressar sua ojeriza à grande mídia, força que desde o início do conflito vem distorcendo e omitindo sistematicamente os acontecimentos no Leste Europeu. “A ocultação dos fatos reais sobre a Ucrânia é um dos mais completos blecautes de notícias de que me recordo em toda a minha vida. A maior concentração de militares ocidentais no Cáucaso e no leste da Europa, desde o final da 2ª Guerra Mundial, é escondida. A ajuda secreta que Washington deu a Kiev e às suas brigadas neonazistas responsáveis por crimes de guerra contra a população do leste da Ucrânia foi apagada do mundo. Todas as provas que desmentem a propaganda segundo a qual a Rússia teria sido responsável por abater em pleno voo um avião civil malaio com 300 passageiros foram apagadas do mundo. E, mais uma vez, quem censura é a imprensa supostamente liberal”. 


A crise na Ucrânia, como a crise na Síria, poderia hoje ser considerada sintoma débil do que chamamos “fim das democracias”. Tentativas de se impor um regime democrático prostrado aos interesses do mercado e do capital financeiro, por forças externas ocidentais, vêm caindo em um paradoxo angustiante. Não há nada democrático no que foi e está sendo feito. 

Golpes, chacinas, assassinatos, incitação de separatismos, ocultação e manipulação de informações são elementos constitutivos da crise na Ucrânia, arquitetada por lideranças ocidentais. Que espécies de democracias são essas? Ao invés de aprimorarmos instituições e órgãos democráticos, estaríamos mais próximos de Estados de vigilância, Estados terroristas. Viveríamos, hoje, numa transição para um sistema que ainda não se sabe, e como bem conceituou Vladmir Safatle, em neodemocracias, onde os plutocratas da guerra são os novos senhores do mundo. Na Ucrânia, quem foi eleito presidente? Ninguém menos que o magnata Petro Poroshenko. 

Em 27 de junho, Poroshenko assinou um acordo histórico com a União Europeia, de livre comércio e cooperação político-militar. Contudo, os conflitos permanecem. Os grupos de extrema-direita estão cada vez mais armados e articulados e uma guerra entre sanções econômicas e disputas regionais está prestes a começar. O Ocidente, novamente, foi bem sucedido. Basta indagarmos: ganhou a democracia?

Nenhum comentário:

Postar um comentário