quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

A epopeia de um tri

por MURILO CLETO

Foto: Agência Pública


O relógio marcava 4 da tarde quando olhei pro céu e vi que o tempo ia fechar. Finais me deixam muito nervoso e, até aquela hora, eu ainda não havia decidido onde ver o jogo.

Como reza a cartilha, botei a mochila nas costas, peguei a bicicleta e parti em direção à faculdade mesmo assim, contando com mais uma chuva de verão, daquelas que estouram durante as aulas e depois somem como se nada tivesse acontecido.

Meu plano era perfeito. Chegaria como quem não quer nada na turma da segunda aula perguntando se eles topavam começar a prova um pouquinho antes. Assim, quem sabe, eu poderia não perder tanto do primeiro tempo no Allianz Parque. A meu favor, ainda contou um barulho ensurdecedor que vinha do auditório e que provocou uma mudança de sala. Acabamos com outra turma do curso, que já faria a sua prova ali com outro professor. Se batesse o desespero, pensei, era só sair correndo sem a consciência pesada de que eles não teriam pra quem entregar o papel.

Seria um plano perfeito se eu não tivesse que buscar alguns alunos perdidos pelos corredores e que, pra meu desespero, ainda não sabiam da mudança. Seria, também, se antes, no meio do caminho, eu não tivesse notado que esqueci as avaliações em casa. A maior subida de todas tinha acabado de ser superada. Mas não voltar não era exatamente uma opção naquele momento. Eu, que não sou muito de suar, já cheguei ensopado.

Horas antes, gravei, pela primeira vez, minha versão do hino do Palmeiras na guitarra. Nem lembrava mais como era, mas achei que era o momento oportuno. Era preciso transbordar aquele misto de sentimentos, com paixão, euforia, ansiedade e sei lá mais o quê nessa panela. Na primeira tentativa, estourou a corda ré. Tudo bem, tenho várias aqui, me confortei. Mas não achei nenhuma equivalente, então tive que tirar de outro instrumento. Só depois que o fiz percebi que tinha visto errado e tava achando até então que se tratava da lá. Tudo bem, era só trocar direito agora. Troquei.

E toquei, depois de ter vestido a camisa da sorte que mandamos fazer na loja da Malu pra jogar contra rivais nos gramados sintéticos da cidade. Considero-a desta forma porque, pelo menos aqui, era um massacre atrás do outro a nosso favor. Nunca responsabilidade minha, diga-se. O que vocês não sabem é que eu havia errado imperdoavelmente de cálculo e precisei encontrá-la no cesto de roupas sujas. A Renata ainda não sabe, mas passei assim mesmo pra vestir. O preço de um sovaco cheiroso, ou seja, um caminhão de energias ruins pra São Paulo, era alto demais pra quem teria João Pedro aquela noite na lateral direita.

Apesar dos imprevistos, tudo correu conforme o combinado. Caiu o mundo durante a primeira prova. E logo depois parou. Esqueci de combinar direito com São Pedro e a chuva voltou. Depois de acomodar todo mundo na nova sala, inclusive os perdidos, voltou a chover torrencialmente. Àquela altura, mesmo a gentil oferta do professor são-paulino Luis Fernando, de atendê-los pra mim, era inócua. Com o texto da semana atrasado pra revista, tive que levar o computador na mochila. E sair daquele jeito era suicídio. Pelo menos pra máquina.

Ainda era cedo quando acabei de recolher todas as avaliações. Fui conferir o tempo de novo, como se o barulho no teto de eternit não bastasse. Resolvi ir pra sala dos professores acompanhar o primeiro tempo, que já tinha começado, pelo Twitter e pelo lance a lance do Globo Esporte. Sinceramente, acompanhar uma final pelo lance a lance é algo que não desejo pra mais baixa das minhas inimigas. Além da demora nas atualizações, eles consideram um lance, por exemplo, a troca de shorts do Zé Roberto. Tempo perdido em vídeo que poderia ser destinado à rede social que é bem mais dinâmica. Lá, um arrombado resolveu compartilhar um tuíte do Milton Neves que dizia “Gol do Palmeiras!”. Demorei uma eterna fração de segundo pra perceber que era de abril.

Não tinha jeito, eu precisava ir embora. Põe num plastiquinho aí, tinha sugerido o Luis Fernando pro notebook não molhar. O único que tinha era o das provas. E ele serviu até a metade, não sem rasgar. Como um fugitivo de Prison Break, corri em direção ao bicicletário e, depois da mais longa abertura de cadeado da história da humanidade, pedalei como se não houvesse amanhã em direção à Vila Osório. Não moro mais lá, mas é mais perto e eu poderia, pelo menos, esperar um pouco até a chuva diminuir assistindo ao jogo, enfim, numa TV.

Tudo apagado. Minha mãe dorme cedo. Como não pensei nisso antes? Tudo bem, é caminho pra casa. A essa altura, meu grau e meio de miopia já nem faziam mais diferença. Nem quando achei que esses quebra-molas na rua fossem, sei lá, sapos. Era melhor guardar os óculos na bolsa do que ficar com aquela visão agoniante de para-brisa sem limpador. Depois de comemorar a travessia sem queda por um pequeno trecho no paralelepípedo, no cruzamento entre as ruas Itararé e São Pedro, um carro me lavou após passar por uma poça d’água. Senti o encharque particularmente no mamilo esquerdo.

Ofegante, cheguei em casa ainda meio atordoado. Antes de guardar a bicicleta, liguei a TV. Foi só então que me lembrei do problema no controle do receptor. Uma espécie de retardo o tem acometido há algumas semanas, mas nunca tinha precisado ligá-lo com urgência mesmo. Nova tortura. Aperto os botões e ele não obedece. Ou obedece, mas não sinaliza, e acabo apertando mais botões. Foi parar num canal de celebridades, ou algo assim, nem lembro mais.

Ensopado, ainda em pé e com a bicicleta na sala, finalmente chego ao SporTV. O primeiro tempo tinha acabado de terminar. Não preciso nem contar que, durante o intervalo, a chuva deu uma trégua.

Mas quem se importa? Ao final da cobrança de pênaltis, disparei no corredor de casa, sozinho, exatamente como há 17 anos, quando Oséas acertou aquela bola inexplicável no gol do Cruzeiro dando a Copa do Brasil pela primeira vez ao campeão do século XX. Escrevo agora do mesmo computador que sobreviveu pra contar essa história. Ao fundo, toca a trilha sonora registrada com a mesma camisa fedorenta que, dessa vez, penso seriamente em nunca mais lavar. As provas dos alunos eu já sequei. Só espero que Anna Beatriz, minha editora na revista, entenda o atraso do texto da semana. Se não entender, tudo bem. Não é todo dia que se podem vencer tantas batalhas duma só vez.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Uma geração de idiotas

por MURILO CLETO

Foto: http://www.walterbatista.com.br/2014/09/melhor-impossivel-danilo-gentili-vem-ai.html


Que as redes sociais gestaram a maior – ou pelo menos mais organizada – geração de idiotas de todos os tempos todo mundo sabe. O que se ignora, tragicamente, são as condições desta gestação. Na América, não só a do Sul, pois há muitos republicanos que também pensam assim, é crescente a sensação de que a esquerda está no poder e acabou por cooptar instituições vinculadas à produção e à difusão de saberes.

Isso ajuda a explicar tanto a paranoia, amplamente reproduzida por grupos de oposição no Brasil, como Movimento Brasil Livre, Revoltados On Line e similares, de que os maiores jornais do país são porta-vozes do governo petista, quanto a de que o marxismo dominou as universidades.


E há muita coisa de nociva nisso, sobretudo no que diz respeito à circulação destes novos saberes propostos por um pensamento que se vende como crítico, como contra o senso comum, mas que significa, na verdade, apenas uma reprodução barata de velhos clichês do pensamento conservador.

Engana-se quem pensa que a maior oposição à esquerda está na sua política econômica. Quer dizer, até pode ser. Mas não em tempos de redes sociais. Hoje, a maior ocupação da direita neocon é no que diz respeito a valores. E não é de se estranhar que partidos historicamente vinculados ao liberalismo na moralidade e na economia, como o PSDB, tenham se alinhado ao que existe de pior no cenário contemporâneo. Porque é discurso fácil, reproduz como metástase e permite identificação mais clara com o eleitorado avesso ao “desvirtuamento de valores” promovido pela “esquerda”.

“Esquerda”, entre aspas, porque ela tem sido muito mais uma imagem do que uma realidade empírica no século XXI.

Veja, onde está concentrado hoje o “pensamento crítico” desta direita aqui? Em temas fundamentalmente morais. E aonde quer chegar esse pensamento que, insisto, se vende como crítico? Onde ele estava antes de a “esquerda” chegar ao poder. Então ele é contra a descriminalização do aborto porque é “a favor da vida” – olha que bonzinho. Ele é contra as cotas porque é “a favor da igualdade perante a lei” – cita até Morgan Freeman pra falar em “consciência humana” daí. Ele defende a legitimidade da violência simbólica porque é “a favor da liberdade de expressão” – e, se precisar, sabe de cor até a 1ª emenda da constituição norte-americana.

E o que o idiota faz? Sai virando estrela se achando gênio.

Há algo de crítico nisso? Claro que não, rigorosamente nada. Mas vende que é uma beleza. Só não digam que eu não avisei.

Abraços, 
Murilo

(Texto originalmente publicado no Facebook do autor)

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Tiro de Guerra desativado em Itararé já não é mais tão indispensável

por MURILO CLETO

Foto: Prefeitura de Itararé


Há poucos dias a prefeitura de Itararé anunciou a suspensão das atividades do Tiro de Guerra, responsável aqui pela manutenção do serviço militar obrigatório no município. Suspensão porque, segundo a administração, é possível que o serviço retorne após o exercício de 2016. Na verdade a medida soa emergencial, considerando a péssima situação orçamentária pro ano que vem. 

De acordo com informações da Secretaria de Finanças, os custos da instituição giravam entre 30 e 40 mil reais por ano. Não é nada assombroso, mas é preciso avaliar que o papel dela pro município já não é mais exatamente o mesmo que de outras épocas. E não convém aqui, nesta oportunidade, discutir a legitimidade de uma educação militarizada pra jovens sem expectativa alguma de seguir carreira no exército.

Enquanto alguns insistem que a medida integra um plano comunista de desarticulação do exército para implantação da ditadura bolivariana (sim, Itararé também é Brasil), muita gente lamentou a decisão considerando a importância da instituição para a educação dos adolescentes no município. Alega-se, não sem grau algum de razão, que encontra-se no exército uma oportunidade única de instrução disciplinar numa juventude por vezes desorientada e sem muitas perspectivas pro futuro.

Nesta percepção sobre o papel do exército há, claro, uma dosagem de saudosismo. E, como todo saudosismo, carregado por uma leitura um tanto idealizada do passado. Em sua maioria, hoje quem lamenta a suspensão das atividades do TG em Itararé tem entre 40 e 50 anos. No período que corresponde à sua idade de serviço, é importante considerar que, além do exército, não havia mais opção alguma de integração educacional e disciplinar, quando o abandono dos estudos no Ensino Médio (ontem colegial) era a regra, e não a exceção.

Hoje o município de Itararé conta com entidades como a Guarda Mirim, que também reproduz parte desta lógica disciplinar de ensino, além de um Ensino Médio ampliado e programas exclusivamente voltados a jovens em situação de vulnerabilidade. Se, de alguma forma, estas opções não estão à altura da importância que a atenção sobre a idade exige, está na hora de participar mais ativamente da organização das ações educativas no município. 

Não tem segredo.

Mas, mais uma vez é preciso destacar: até agora a prefeitura não se manifestou oficial e abertamente a respeito do assunto. Foi através do jornal O Guarani que a notícia passou a circular. Nenhuma nota em imprensa e site oficiais, nem nas redes sociais geridas pela administração. Ninguém pra dizer claramente o que o município pode oferecer pra jovens na faixa etária correspondente. Aí fica muito difícil.

Abraços, 
Murilo

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Amadou Hampâté Bâ: uma sabedoria ancestral

por LUISA DE QUADROS COQUEMALA


Meu avô explicou mais tarde que, se Tidjani tivesse permanecido naquele dia à sombra da grande acácia, e se a oração de ASR (momento da tarde quando o sol anuncia seu declínio) ali houvesse surpreendido, jamais teria se tornado chefe, nem fundado seu reino neste local. Certamente, esta não é uma lógica muito cartesiana. Mas para nossos anciãos, sobretudo para os “homens de conhecimento” (silatigui para os fulas, doma para os bambaras), a lógica apoiava-se em outra visão de mundo, em que o homem se ligava de maneira sutil e viva a tudo que o cercava. Para eles, a configuração das coisas em determinados momentos-chave da existência possuía um significado preciso, que sabiam decifrar. “Esteja à escuta”, dizia-se na velha África, “tudo fala, tudo é palavra, tudo nos procura comunicar um conhecimento...


Amadou Hampâté Bâ apareceu em minha lista de autores a serem lidos por acaso, em pesquisas aleatórias. Seu livro, Amkoulelel, o menino fula, consequentemente, veio parar no meu colo de paraquedas e acabou se tornando uma agradável surpresa.

O livro consiste, basicamente, no autor contando sua história até a fase em que começa a se tornar um adulto, conseguindo seu primeiro trabalho. Hampâté Bâ, contudo, não começa contando sua história a partir de si. No início do livro, o autor conta sobre sua linhagem familiar de uma maneira muito elucidativa, explicando fatos não apenas de sua família, mas também aqueles que envolveram a história da região em que nasceu – atualmente, o Mali. 

O autor tem suas primeiras lembranças, desconexas e breves, apenas na página cinquenta e cinco, enquanto começa a ter uma consciência maior do mundo apenas na página cento e vinte. Pode soar chato ou arrastado pensar em um livro onde a personagem principal entra tão demoradamente. Contudo, esta não é a intenção de Hampâté. Em sua narrativa, ele quer justamente mostrar um tipo de tradição que está se perdendo, e é por isso que escreve sua história como se estivesse narrando oralmente – como era costume em sua juventude. Seu livro pode parecer difícil, quase denso demais, porque não tem justamente a pressa do mundo de hoje, tudo se desenrola detalhadamente, com uma calma e paciência que raramente se testemunham em nosso mundo turbulento. 

E esses fatores tornam o livro do malinês extremamente rico – não apenas porque serve-se dos mínimos detalhes, mas também porque, para tanto, mostra os costumes através de explicações históricas e culturais muito ricas. E as explicações englobam costumes à mesa, guerras civis, religião, educação, circuncisão, obediência aos pais e por aí vai. De forma que, muito mais do que uma simples autobiografia, Bâ faz com que mergulhemos num determinado tempo e época que parece tão distante e tão ricamente diferente do qual temos hoje. Ler seu livro ao mesmo tempo em que se vive num mundo globalizado, com uma cultura cada vez mais comercial, dá um aperto, um medo do que pode vir pela frente – e, além disso, uma necessidade de parar no meio de toda essa correria e respirar demoradamente, contando até dez e ter paciência, olhar ao redor.

Com uma técnica puramente mnemônica, Hampâté realiza uma narrativa única, diferente daquilo que se lê normalmente. Há, no livro, uma mistura de antropológico, social, histórico e, ainda, literário. Inclusive, às vezes, lendo o livro, esquecia que era de fato o relato sobre uma vida real e mergulhava no livro como se fosse um belo romance – provavelmente pela maneira como é contado (sem esquecer o fatos de que é um cotidiano diferente, longínquo e quase inimaginável quando comparado ao mundo de hoje). 

E em tempos como os nossos também é importante notar os relatos de Bâ sobre a educação islâmica que teve ao longo de sua infância – até entrar na “escola dos brancos”, onde esse tipo de educação não acontecia. A imagem que se passa do islã é a de um lado humano que a religião trás – apesar de toda demonização que vem sofrendo hoje, não deixa de ser uma religião como qualquer outra, com elementos bons, ruins e, claro, passíveis de distorção. E depois da chocante notícia (não tão divulgada, claro), de um ataque terrorista no Mali no último dia vinte e um, Amkoullel, o menino fula, mostra-se um livro importante não apenas para que se veja o outro lado de uma religião que tem 1,5 bilhões de fiéis, mas também para que não esqueçamos da importância cultural que tem um país como o Mali. O terrorismo não vai em direção apenas a países como a França, mas também a outros cuja maioria é muçulmana (no Mali, eles representam 90% da população). A diferença estaria, a meu ver, na quantidade de atenção que se dispende para determinados lugares do planeta.

A edição brasileira cuja edição eu li, da Palas Atena, é de ótima qualidade, com bom papel e belas fotos no fim do livro. Vale a pena procurar uma edição pela internet não apenas pela boa qualidade da edição e do texto em si, mas também pela mensagem que o livro nos deixa: devemos olhar mais para o próximo, prestar atenção em outras culturas – que também merecem ter a atenção dos olhos do mundo. E, claro, andar devagar, sabiamente, diante de um mundo tão conturbado.


Ficha Técnica

TÍTULO: Amkoullel, o menino fula
AUTOR: Amadou Hampâté Bâ
NACIOLIDADE: Malinês
EDIÇÃO: Palas Atena (2003)

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Não tem defesa

por MURILO CLETO

Foto: Wagner https://www.flickr.com/photos/wagnerphn/6134432987


No ano passado, a prefeitura de Itararé interrompeu uma sequência histórica de adiantamento da primeira parcela do 13º salário aos funcionários municipais. A medida gerou reações desproporcionais, considerando que não havia nada que obrigasse o executivo a realizar os pagamentos no mês de junho, como vinha acontecendo. Isso talvez se explique pelo fato de que boa parte do barulho foi realizado por quem sequer era funcionário, mas queria tumultuar. 

Em meio a tanta histeria, a verdadeira e legítima reclamação dos trabalhadores acabou passando despercebida: tudo bem não adiantar, mas não dá pra avisar assim, tão em cima da hora. 

Com a chegada de 2015, todo mundo já era capaz de prever que o adiantamento não viria. Mas, mais uma vez, o aviso veio em cima da hora em junho, acompanhado da promessa de que a primeira parcela do 13º seria paga em 20 de novembro. A promessa não apenas não foi cumprida como também desfeita em comunicado emitido no dia 19, só um dia antes.  Não tem desculpa. Não dessa vez.

Além disso, situação dos estagiários é similar a de funcionários todos os meses. Tão recorrente que os atrasos já não são mais nem novidade. É bem verdade que se, por um lado, o estágio não é vínculo empregatício, a remuneração é necessária inclusive, e muitas vezes, pra garantia da manutenção dos seus estudos. E o impacto dos atrasos é grave demais com as altas taxas de juros na atualidade. Mas, mais do que isso, o mesmo problema além do atraso: a comunicação, sempre urgente e improvisada.

Todo mundo sabe que a situação da prefeitura é calamitosa. Se não está nada bom pra governos federal e estaduais, pros municípios é ainda muito pior. Mas a crise também poderia ser uma oportunidade de articulação com população e quadro de funcionários, em grande medida porque já ficou bastante claro que a solução não vai vir de gabinetes fechados. Até aqui não veio. O orçamento participativo, grande promessa de campanha, é qualquer coisa menos uma realidade próxima. E ninguém sabe o porquê.

É natural que, depois de 2 anos insanos de mentiras e a atuação vergonhosa de uma oposição que nunca foi a Cristina mas a Itararé, o governo municipal evite o desgaste de um capital político que hoje sequer existe e faça anúncios negativos como este em cima da hora, acreditando talvez que o problema seja solucionado e a arrecadação aumente como por milagre pouco antes dos pagamentos. Mas agora o quadro está sério demais pra que o descaso continue persistindo. 

Descaso que, verdade seja dita, não é exclusividade dos funcionários de carreira, como muitos, sem saber, alegam. Há meses os comissionados têm recebido com atraso, frequentemente sem qualquer aviso. A ideia feita de que comissionados não são produtivos, comum no imaginário médio brasileiro, desconsidera que muitos abandonaram outras atividades pra assumir a gestão provisoriamente e precisam, portanto, tanto dos pagamentos quanto, pelo menos, da sensibilidade do gabinete.

Há muitos motivos pelos quais tantos boatos pululam acerca da gestão municipal em Itararé. Mas um deles, sem dúvida alguma, é a sua própria insistência em confirmá-los da pior forma possível: sempre em cima da hora, no improviso e sem qualquer capacidade comunicativa. Assim fica muito difícil frear outros.

Um desdobramento inequívoco disso é que as trapalhadas da administração têm servido de palanque pra charlatões de toda ordem. A maioria não tem ideia do funcionamento da máquina pública e diz apenas pra pagar. Não diz como nem por onde. O próprio legislativo, por onde passam as questões envolvendo arrecadação, majoritariamente ainda não aceitou a diplomação da prefeita em 2012 e segue firme em campanha pra 2016. E o fato de a gestão não ser capaz de reagir à altura deveria servir como ponto de inflexão. Até aqui não serviu. E não há mais quem acredite que algum dia vá servir.

Abraços, 
Murilo

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Quem tem medo de Emma Bovary?

por LUISA DE QUADROS COQUEMALA



Há alguns dias, relendo o sublime livro de Flaubert, Madame Bovary, deparei-me com um trecho já anteriormente grifado. Ei-lo: 

“Seus hábitos amorosos fizeram com que a Sra. Bovary mudasse logo suas maneiras. Seus olhares tornaram-se mais ousados, seu falar mais livre; cometeu mesmo a inconveniência de passear com o Sr. Rodolphe com um cigarro na boca, como se quisesse escarnecer do mundo; enfim, os que ainda não duvidavam não duvidaram mais quando a viram, um dia, descer da Hirondelle com o corpo apertado num colete, à moda masculina; e a sra. Bovary mãe, que após uma assustadora cena com o marido, viera refugiar-se na casa do filho, não foi a burguesa menos escandalizada. Muitas outras coisas lhe desagradaram: em primeiro lugar, Charles não seguira seus conselhos quanto à interdição dos romances; em seguida, o estilo da casa desagradava-lhe; permitiu-se fazer observações e houve atrito, sobretudo uma vez, a propósito de Félicité.”

À luz de um mês tão conturbado para as mulheres brasileiras como foi o mês de outubro, encaro este trecho. Nele, o livro já percorreu a história de Emma Bovary e de suas desilusões. A protagonista está envolvida, então, em seu primeiro caso, com Rodolphe.

Contudo, quando passo meus olhos novamente por essa beleza de texto, noto que Emma não incomoda no romance e não incomodou fora do romance apenas porque era adúltera (Flaubert, ao escrever o livro, foi julgado por atentado à moral e à religião). Se o problema se resumisse a isso, é possível que Emma encontrasse uma saída que não o seu fim trágico.

O que incomodou e incomoda em Emma Bovary é seu lado, digamos, quixotesco. A personagem não trai pelo simples desejo de trair, mas sim porque compara sua realidade com outras (livrescas, mas que não deixam de ser imagináveis). Em suma: na sua essência, ela questiona a realidade em que está imersa. Vai contra o que as burguesas e burgueses da época viam com bons olhos. 

O que incomoda em Emma Bovary não é apenas o fato de ela ter se cansado de seu marido e, então, traí-lo. Não. O que incomoda em Emma Bovary é que, como diz o narrador, ao se portar como se porta, é “como se ela quisesse escarnecer do mundo”. Eis sua maneira de confrontar uma realidade a qual, no fundo, não se adequa. Porque Emma não apenas trai o marido, Emma passa com um cigarro na boca, Emma usa colete à moda masculina, Emma enfrenta e contraria a mãe de seu marido. Emma não se cala, Emma não se reprime, Emma não se contenta em ser parte passiva de uma sociedade que é naturalmente opressora, que entra em pane quando uma mulher ameaça abalar barreiras tão duramente estabelecidas.

Como já disse, pauto-me no hoje, no meu presente (e aí estaria o porquê de Madame Bovary ser um clássico: até hoje encontramos questionamentos neste maravilhoso livro, até hoje ele dialoga conosco). Não acredito que Flaubert tinha intenção de representar uma figura feminina imersa em alguma espécie de luta social engajada. Contudo, Emma, que permanece em seu mundinho de província, escandalizou uma sociedade que não estava acostumada a ver mulheres que “saem das rédeas”. Neste pequeno trecho, encontro uma chama incandescente dentro da personagem, algo notável e sublime à sua maneira. 

E apesar dos rumos que a história toma, poderíamos dizer que Emma, assim como Dom Quixote, teve momentos em sua vida que foram verdadeiras apoteoses de felicidade – pequenos momentos que podem ter sido tão intensos como várias “mães de Charles” nunca tiveram. E depois de ter provado esse tipo de sentimento, Emma, de alguma maneira, solta suas amarras, torna-se um pouco mais livre. Não é à toa que, em um dado momento da narrativa, Rodolphe exclama: “Será possível pedir a tal tipo de mulher que se conforme?”

Emma Bovary não se conforma. Por isso, assustou a sociedade no século XIX e assustaria muito conservadores de hoje - assim como Simone de Beauvoir impressionou muitas pessoas de sua época e ainda as impressiona hoje (vide a enorme repercussão em que ela foi envolvida por ter caído na prova do ENEM). 

O fato é que ambas as figuras não alarmam porque estão erradas, não amedrontaram porque são loucas. Assustam porque, em algum momento, tomaram as rédeas de seu próprio ser e foram atrás do que queriam (mesmo sendo mulheres). É isso que assusta nossos compatriotas machistas de hoje. Mas, infelizmente, para eles, nós chegamos cada vez com mais firmeza, nós estamos cada vez maiores e mais unidas. Desde o século XIX, estamos cada vez mais dispostas a fumar o que quisermos, vestir o que quisermos. Leremos, contestaremos e, claro, seremos donas de nós mesmas. Naturalmente, os opressores entram em crise, tomam uma posição de defesa. (E aí entram as apelações, acusações e distorção de um discurso que pensam que conhecem.)

Madame Bovary é lido assiduamente até hoje porque é, no mínimo, instigante. Simone de Beauvoir é reconhecida no mundo todo e cai no ENEM, por exemplo, porque grande expoente de uma voz que as mulheres vêm criando. Está dado o recado: nós vamos lutar por nossos direitos e por nossa liberdade. Nós conhecemos nossa verdadeira força interior e nós não iremos embora. Acostumem-se. Ou, então, terão que nos engolir.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Vamos falar de Direitos Humanos?

por SANDRO CHAVES ROSSI



“(...) o contra-ataque aos bandidos é o que chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite. E, aos defensores dos direitos humanos, que se apiedaram do marginalzinho preso ao poste, eu lanço uma campanha: faça um favor ao Brasil, adote um bandido”

Essa fala é de Rachel Sheherazade, âncora do Jornal do SBT, ao tentar justificar a ação de um grupo de homens contra um menor que tentou assaltá-los. No ocorrido, os homens lincharam o menor de idade e o amarraram junto a um poste. Essa fato teve muita repercussão pelo país, o que se intensificou pelo comentário polêmico de Sheherazade. Dentre opiniões favoráveis e contrárias à jornalista, algo ficou mal explicado: o que são Direitos Humanos?

Boa parte dos setores mais conservadores da sociedade pregam que os direitos humanos só defendem bandidos ou que é coisa de "comunista" que está contra o "cidadão de bem". Há equívocos muito grandes proferidos por essas pessoas que, por ignorância ou mau-caratismo, acabam convencendo boa parte da população a ter essa noção errada sobre Direitos Humanos. Portanto, é bom ressaltar e relembrar algumas coisas para que esses equívocos não se repitam.

Os antecedentes históricos dos Direitos Humanos são intrínsecos ao Iluminismo europeu, movimento cultural e filosófico que aconteceu nos séculos XVII e XVIII. Nesta época, Jean Jacques Rousseau realizou estudos em sociedades primitivas e nelas redescobriu valores perdidos pela civilização ocidental, tais como liberdade, igualdade e fraternidade (Liberté, Egalité, Fraternité). Os ideais iluministas foram muito bem vistos na época, pois tratavam o Homem como o centro das preocupações e não mais o império do fanatismo e da fé religiosa, conceitos que eram dominantes no período medieval, mas sim o da razão e o da Ciência. É neste contexto que nascem os direitos humanos.

Ao contrário do que muitos dizem, os Direitos Humanos não são coisa de comunista. Os direitos humanos são uma referência mínima para garantia de um conceito bem ocidental de dignidade e nasceram no seio do liberalismo. A própria Declaração Universal das Nações Unidas, de 1948, sofreu resistência do bloco soviético na época por conta da presença da propriedade privada como direito humano e a ineficácia de diminuir as diferenças sócio-econômicas da população. Hoje, boa parte dos movimentos de esquerda adere à bandeira dos Direitos Humanos, mas isso não quer dizer que seja uma bandeira única da esquerda. Se você não vê quase ninguém da direita defendendo os Direitos Humanos, o problema não são os Direitos humanos e sim a direita.

Os Direitos Humanos não defendem só o bandido, como algumas pessoas gostam de dizer. Aliás, é bom ressaltar bem o que acontece nesse cenário. Direitos humanos são um conjunto de garantias fundamentais à disposição de todos os seres humanos. São uma maneira de assegurar a qualquer pessoa um razoável equilíbrio entre a impotência do cidadão diante da força do Estado, através dos seus agentes públicos, notadamente diante daqueles que utilizam armas e são imbuídos da repressão penal, mais propensos à exacerbação e extrapolação de suas finalidades. O poder do Estado, com todo o seu aparato, tende a invadir e subjugar o cidadão afetando-o e oprimindo-o em sua dignidade como pessoa humana.

O indivíduo, quando é preso como acusado de algum crime, não perde a condição de pessoa humana. Desta forma, deve ser submetido a um julgamento dentro das normas processuais, assegurando-lhe o direito de não ser submetido a tratamento desumano e cruel, como a prática de tortura para obtenção de confissão ou assumir autoria de crime que não cometeu. Caso não houvesse o mínimo de garantias, o poder do Estado seria ilimitado, fazendo-nos retroceder ao estágio de barbárie. Defender os direitos humanos não é defender um indivíduo isoladamente, é defender toda a sociedade.

Um bom exemplo que temos no Brasil sobre essa questão é com a atuação do Deputado Estadual do Rio de Janeiro Marcelo Freixo (PSOL). Freixo é presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e ele sempre faz questão de expor que o Estado fornece auxílio às vítimas de algum homicídio, incluindo policiais, porém o que Marcelo Freixo sempre tenta mostrar é que o órgão da Polícia Militar não tem uma política de Direitos Humanos definida e quase sempre fica a mercê da boa vontade de seus superiores.

Não é difícil achar exemplos de famílias de policiais e de vítimas que receberam auxílio do Estado, porém ainda há uma enorme dificuldade do trabalho ser estendido a todos da corporação. Marcelo Freixo usa um exemplo que aconteceu em novembro do ano passado. O recruta Paulo Aparecido Lima, de 27 anos, morreu após uma sessão de treinamento no Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (Cfap). Sua turma foi submetida a exercícios que mais pareceram uma sessão de tortura. Além da morte de Paulo, outros 33 alunos precisaram de atendimento médico devido a queimaduras. A Comissão de Direitos Humanos e Cidadania atuou no caso do recruta, acompanhou os depoimentos das vítimas e vistoriou as instalações do Cfap, porém tudo foi em vão. Essas foram as palavras de Marcelo Freixo sobre o caso:

"Em vez de bravatear, a principal preocupação de um chefe de Estado, responsável pela política de Segurança Pública, deveria ser a garantia das boas condições de trabalho e da segurança dos policiais militares, valorizando suas carreiras, pagando bons salários, dando uma formação adequada à defesa da cidadania e dos direitos humanos e garantindo mais democracia dentro da corporação. Por exemplo, os policiais brasileiros morrem três vezes mais fora do horário de serviço. Devido às precárias condições de trabalho, eles são obrigados a recorrer aos chamados bicos, cuja situação é ainda mais precária. É fundamental a valorização salarial para que trabalhadores e trabalhadoras não tenham que expor suas vidas em empregos extras que não lhes dão segurança. Precisamos superar o atual modelo de segurança, baseado na guerra, no militarismo e na eliminação do inimigo. Temos a polícia que mais mata e que mais morre. Não há vencedores nesta realidade insana. Por isso, a luta política é pedagógica, e este debate precisa ser feito pelo conjunto da sociedade de forma responsável. A defesa dos Direitos Humanos não pode ser algo alheio à vida dos policiais e à Segurança Pública, como se estivessem em lados opostos."

A bandeira dos direitos humanos está fundada no pressuposto moral de que todas as pessoas merecem igual respeito umas das outras, somente a partir do momento em que formos capazes de agir em relação ao outro da mesma forma que gostaríamos de que agissem em relação a nós é que estaremos conjugando essa bandeira corretamente. Portanto, quando nos deparamos com a violência das grandes cidades, não devemos culpar os Direitos Humanos, mas sim as políticas públicas que contribuem com a diminuição do impacto da violência, como uma educação pública de qualidade, incentivos a cultura e lazer e uma reforma no sistema de segurança pública, que mal preza pelo bem-estar de seus próprios funcionários.

E em relação aos mal intencionados que insistem em disseminar o ódio e a desinformação como panfletagem política, tudo bem que vivemos em um tempo que há uma imensa dificuldade em manter raciocínios saudáveis, mas achar que as cidades são desumanas por causa dos Direitos Humanos é até deficiência de interpretação do nosso idioma. O correto éramos entender o que criticamos, mas como eu sei que isso nunca irá acontecer, apenas peço que consultem o dicionário de tempos em tempos. O bom senso agradece.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Noites das mil e uma noites: as reflexões que o mundo de Scherazade proporciona aos dias de hoje

por LUISA DE QUADROS COQUEMALA

“- Zarmabaha, este mundo está esfalfado de tanta ignorância”


Quem não conhece, mesmo que vagamente, a famosa obra árabe As mil e uma noites? É comum ler um romance do século XIX e encontrar lá, em meio às páginas, uma referência ao famoso livro. Scherazade, o sultão Shahriar e uma multidão de personagens estão tão longe e, concomitantemente, tão perto de nossa cultural ocidental. 

E é então que aparece Naguib Mafouz. Através de uma sacada genial, o autor egípcio, em seu livro Noites das mil e uma noites, utiliza os personagens e a atmosfera mágica da obra-prima As mil e uma noites, transferindo-a para outro tempos.

Assim, nos deparamos com uma cidade indeterminada, em plena Idade Média. A narrativa se inicia justamente a partir do momento em que termina o grande clássico da cultura árabe: depois de narrar histórias para o sultão Shahriar, Scherazade recebe a notícia de que ele quer sua mão – cessando definitivamente a matança diária de mulheres.

Nos três primeiros capítulos, há, além da situação de Scherazade, uma apresentação geral da sociedade da cidade, baseada nos personagens da obra clássica. E é interessante notar como no decorrer das várias narrativas que compõem o livro (também à maneira do grande clássico que serve de base), as histórias das pessoas vão se entrelaçando através de vários acontecimentos pessoais, ganhando vários focos e perspectivas.

Através desta estrutura, Mafouz consegue realizar uma crítica genial à sociedade moderna. O clima ainda é o das Mil e uma noites, ainda há a presença do fantástico. Contudo, ao trazer a história e as personagens para outro tempo, o enredo, inevitavelmente, ganha um clima de secularização e humanização. 

Os gênios que aparecem interferem, à maneira dos deuses da Ilíada e da Odisseia, nos destinos humanos. Mas, mistura-se a isso os sentimentos e as fraquezas meramente humanas, tornando possível (com tantas referências e fantasia) a crítica que se volta sabiamente para o hoje. A análise social abrange, através de diversas narrativas, o sistema político, as guerras, a ganância humana e sobretudo a religião. 

E, do próprio Naguib Mafouz, é difícil se esperar menos. Vencedor do Nobel de Literatura em 1988, o autor, formado em Filosofia pela Universidade do Cairo, cresceu numa família muçulmana devota, com uma educação islâmica restrita e regrada. E Mafouz nunca foi uma pessoa conformada com sua realidade. Crítico e audaz, chegou a levar uma facada no pescoço em 1994 de um extremista islâmico por seus livros serem “blasfemos demais”. 

Logo nota-se que a intenção de Mafouz não reside em criticar o islamismo em si, como religião. Inclusive, há no enredo incríveis passagens com o sheik Abdhala e belos pensamentos sobre fé. Mafouz foca no extremismo, resultado e fonte de muito mal. (Extremismo este que, inclusive, não cabe hoje apenas ao islamismo. Um pastor ou padre que prega preconceito atrás de preconceito não fica atrás, e aqui entra uma das belas máximas do livro: “A pior doença que alguém pode sofrer é a ilusão de ser deus”). 

Naguib, que morreu em 2006, escreveu um livro de atualidade surpreendente, capaz de prender a atenção do leitor. A narração flui bem, é simples e intrigante. Além disso, as histórias tomam rumos interessantes e surpreendentes. 

A meu ver, fica, por último, a interessante reflexão de como nós, seremos humanos, continuamos a ter inúmeros defeitos, a cometer crassos erros para com nós mesmos. Faz pensar para onde estamos indo, falhando cegamente nas mesmas coisas, tendo os mesmos preconceitos e extremismos, de uma maneira insistente, tola e egoísta. E é por isso que ler e pensar sobre este belo livro dói um pouco: afinal de contas, vamos do mundo antigo árabe diretamente para nosso mundo, onde fica inevitável reconhecer nossas grandes falhas.


Ficha técnica

Título: Noites das mil e uma noites
Autor: Naguib Mahfouz
Nacionalidade: Egípcio
Edição: Companhia das Letras (1997, 2008 e 2011)

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Não é de hoje que os tucanos são contra a educação

por SANDRO CHAVES ROSSI



Lembro do meu primeiro ano de faculdade, entre uma maçante aula e outra na faculdade de engenharia, sempre havia algum professor que fazia algum comentário negativo sobre a situação da universidade. Garanto que esse texto talvez teria muito mais repercussão se eu tivesse começado minha trajetória acadêmica em uma universidade federal durante o governo do PT, mas não, comecei a estudar na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, ou simplesmente Unesp, em 2012 - o ano talvez seria irrelevante, visto que o PSDB governa São Paulo desde 1994, dois anos depois de eu nascer.

A grande maioria das críticas feitas pelos meus professores era sobre a estrutura da universidade. Nós alunos dificilmente discordávamos deles, as aulas práticas feitas em laboratório mostravam bem a realidade que era tão criticada dentro das salas de aulas. Porém, o sucateamento da educação não se limitava somente às universidades públicas, elas se estendiam até o ensino básico. Nos últimos dias, vimos que o governador, Geraldo Alckmin, planeja fechar mais de 100 escolas no estado, o que é alarmante. O grande ponto nisso tudo é que é errado associar a ideia de sucateamento da educação somente ao governador do estado de São Paulo, o sucateamento é algo intrínseco ao PSDB.

Certa vez, Bresser Pereira, um dos fundadores do PSDB, disse em entrevista à Folha de São Paulo que o PSDB acabou guinando à direita por causa da oposição que fazia ao governo do PT. Claro que há inúmeras áreas a serem observadas, mas no que diz respeito à educação, o PSDB segue uma cartilha neoliberal muito antes do PT ser da situação, seja no governo federal ou no estadual. Exemplos não faltam, tanto de candidatos quantos de anos diferentes. As gestões tucanas têm sido um terror para os educadores de todo o país.

Na campanha de 2014, Aécio Neves fez uma grande propaganda sobre o "choque de gestão" de seu governo em Minas Gerais, que nada mais é, segundo ele mesmo, do que reduzir gastos na máquina pública com o intuito de viabilizar melhor os serviços básicos públicos. Não vamos entrar em detalhes de como o governo tucano fez esses cortes, mas em relação à educação, nem o mínimo de investimentos Aécio aplicou no seu governo, muito menos o de seu sucessor, Antônio Anastasia. Na gestão Aécio/Anastasia, a participação dos gastos com educação em relação às despesas totais do estado caiu de 19,36% em 2003 para 11,53% em 2012. Há vários anos o estado não cumpre o investimento mínimo em educação determinado pela Constituição, que é de pelo menos 25% da receita resultante de impostos. Aécio diz que investiu mais, reafirmando isso nos balanços anuais de governo que indicam percentuais superiores a 25%: 28,12% em 2009, 27,28% em 2010, 30,6% em 2011 e 32,59% em 2012. O que Aécio não diz que a administração estadual inclui indevidamente no cálculo dos gastos em educação outras despesas que não estão diretamente relacionadas à manutenção e ao desenvolvimento do ensino, como o pagamento de aposentadorias para profissionais inativos do setor. Com o ajuste correto, os governos de Aécio e Anastasia não conseguem chegar no mínimo estabelecido pela Constituição, como 20,15% em 2009, 19,79% em 2010, 21,71% em 2011 e 22,95% em 2012. Não é à toa que Fernando Pimentel, candidato do PT pelo governo mineiro em 2014, ganhou as eleições com um grande apoio dos profissionais da educação.

Aproveitando o embalo das eleições de 2014, temos também no Paraná Beto Richa, que foi eleito ainda no primeiro turno. Mal começou 2015 e Richa enfrentou a classe do professorado paranaense, cancelou reajustes, quis mexer na aposentadoria dos profissionais da educação e, quando houve revolta, agiu com truculência contra os manifestantes. A ação da Polícia Militar contra os professores gerou uma revolta nacional impossível de ser camuflada, tanto que as mobilizações para que Richa fosse responsabilizado foram grandes e então o Ministério Público do Paraná (MP-PR) ajuizou uma ação civil pública contra o governador por atos de improbidade administrativa. Se engana quem acha que isso foi novidade no Paraná, Alvaro Dias, hoje senador pelo PSDB, soltou a cavalaria da PM contra os professores em 1988, quando o mesmo era governador do estado. O ato foi tão truculento que até hoje é lamentado pelos educadores não só do Paraná, mas de todo o país.

Temos como maior exemplo desse desastre tucano na educação o seu maior reduto: São Paulo. Professor em São Paulo já sofreu de tudo na mão dos governantes. Se fossemos falar de tudo que o PSDB fez para os educadores em São Paulo, teria texto no Desafinado até 2017. Não vou entrar muito em detalhes, deixarei essa árdua missão para os meus amigos professores que aqui também escrevem e são (ou foram) funcionários do governo estadual paulista. Um trecho de um texto do filósofo Vladimir Safatle na Folha de São Paulo chamado "Tucanistão" reflete bem o que são 21 anos de governo tucano em um estado:

"(...) Alguns podem se impressionar com o fato de tanto fracasso não abalar nosso amor por nossa dinastia. É que eles ainda acham que devemos avaliar nosso líderes por aquilo que eles são capazes de fazer, mas nós descobrimos o valor do amor incondicional. Nós os amamos porque… nós os amamos. Por isso, nossa terra é o lugar da pura felicidade. O Tucanistão é a locomotiva do progresso imaginário, alimentada por choques tortos de gestão.”


Já que estamos falando dos "primórdios" tucanos, vale a pena compartilhar também uma lista com 13 indicadores feitos por Lauro Mattei, professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), sobre as universidades na época dos mandatos seguidos de Fernando Henrique Cardoso e o que elas não tinham comparadas aos dois mandatos seguidos de Luís Inácio Lula da Silva:

1) Contratação de novos professores: Durante 5 anos (1997-2001) foram proibidas quaisquer contratações de professores, ao mesmo tempo que mudanças nas leis sobre as IFES levaram a uma enorme quantidade de pedidos de aposentadorias precoces;

2) Vagas: ao longo dos 8 anos do governo FHC não houve nenhuma expansão de vagas nas universidades públicas federais, fazendo com que a escala social de acesso ao ensino público e gratuito se verticalizasse cada vez mais;

3) Novas universidades: a durante os 8 anos não foi criada nenhuma nova universidade federal;

4) Novos campi: o número de campi federais praticamente se manteve inalterado ao longo dos 8 anos de governo FHC;

5) Orçamento: durante todo o governo FHC ocorreram cortes sequenciais de verbas orçamentárias, tanto para infraestrutura como para as atividades de ensino, pesquisa e extensão;

6) Salários de professores: por mais de 5 anos os salários dos docentes das IFES ficaram congelados levando a perdas salariais significativas para o conjunto da categoria, obrigando a mesma a desencadear greves praticamente todos os anos do Governo FHC;

7) Programas de qualificação docente: restrição enorme de bolsas para programação de doutorado e de pós-doutorado visando qualificar melhor a mão-de-obra docente;

8) Bolsas aos estudantes de pós-graduação: restrição enorme de bolsas de estudos, mantendo-se, inclusive, os valores congelados por muitos anos;

9) Bolsas aos estudantes de graduação: restrição enorme de bolsas para estudantes de graduação, especial nas áreas de iniciação científica e de extensão;

10) Programa internacionais de intercâmbio para os estudantes de graduação: nenhuma ação para este segmento estudantil foi implementada ao longo de 8 anos. Ao contrário, até mesmo as poucas bolsas foram reduzidas.

11) Técnicos Administrativos em Educação: restrição sequencial de contratações de novos servidores com implicação negativa sobre o funcionamento das universidades;

12) Salários do TAEs: arrocho salarial durante todo período com perdas salariais ao longo dos dois mandatos do governo FHC;

13) Expansão do ensino superior privado: uma política clara de opção pelo ensino superior privado no país, inclusive com o ministro da Educação virando consultor das instituições privadas de ensino superior e do Banco Mundial.

Mesmo sendo o maior partido de oposição, o PSDB sempre pecou muito em relação à educação. Não sei vocês, mas eu não voto em quem é contra a educação, tampouco em quem bate em professor. 

terça-feira, 6 de outubro de 2015

O que a oposição não disse sobre o governo Cristina

por MURILO CLETO



Em quase 3 anos de Cristina Ghizzi à frente do Paço Municipal em Itararé, muita coisa se disse a respeito de seu governo. Indiscutivelmente, coisa demais. E, até que se prove o contrário, sua gestão vai ser lembrada como uma das mais corretas nas últimas décadas. Talvez seja preciso que os cofres públicos voltem a produzir compras superfaturadas, desrespeitando todas as regras previstas pela Lei de Licitações, pra que isso seja reconhecido. Talvez, porque a histórica relação do poder executivo com a imprensa local e com lideranças espúrias é suficientemente conhecida dos cidadãos da pedra que o rio cavou.

Da diplomação de Cristina, em dezembro de 2012, até hoje, a oposição soube articular muito bem o que dizer. Com jornais e rádios de sua propriedade ou de correligionários, disse que a prefeitura havia cortado casa de atendimento a pacientes de câncer, remédios populares, programas educacionais, quase sempre sem o menor fundamento. 

Os prejuízos dos boatos lançados são incalculáveis. Houve pais que se confundiram com o horário de aulas dos seus filhos por causa de um deles. Outro usou de má-fé uma notícia sobre reajuste do ITBI, transformado em IPTU, estampando na capa de jornal um suposto aumento de 500%, também absolutamente irreal. A lista de feitos do parlatório protagonizado pela oposição itarareense é tão grande que precisaria de uma reflexão própria, o que não é o objetivo deste texto.

O que a oposição não disse sobre o governo Cristina tem muito a ver com o seu potencial, anunciado por 4 anos de atuação no legislativo e algumas décadas junto a movimentos sociais e ao próprio partido, ainda enquanto alternativa distante do poder no município. Cristina se forjou na rua. Sentou com representantes de categoria e de bairro. E nada disso, nem de longe, aconteceu a partir do momento em que assumiu a prefeitura.

No início do governo, uma boa mas mal articulada tentativa de aproximação com os cidadãos aconteceu através do projeto Prefeitura Itinerante. Boa, porque era a oportunidade de contato entre o executivo e os moradores de bairro em alguma situação de vulnerabilidade - quem vive em Itararé sabe que não são poucos, considerando todas as carências possíveis de infraestrutura. Mal articulada, porque, além de ter trazido pouco ou nenhum retorno aos moradores das regiões que o receberam, foi extinta rapidamente. E também sem nenhum esclarecimento.

Grande parte da retração das atividades da prefeitura guarda relação com a escassez de recursos. Todo mundo que lida com o poder público, em alguma das esferas, sabe. Mas quem mora numa região sem creche, posto de saúde, área de lazer, asfalto, esgoto, tanto faz, nem sempre sabe. E não tem obrigação nenhuma de saber. Uma das maiores promessas de campanha de Cristina era o orçamento participativo, que nunca nem chegou perto de acontecer. Que não seja a ocasião de uma revolução nos investimentos do município, o orçamento participativo poderia ser, em primeiro lugar, a sua otimização e, ainda, uma oportunidade de diálogo que escancarasse melhor os problemas sofridos pela administração. 

Com a crise, os municípios estão quebrados. E um dos motivos pelos quais rigorosamente nada é feito a respeito disso, considerando a importância deles na prestação de serviços públicos básicos, é a ausência de uma consciência a respeito de suas responsabilidades previstas no pacto federativo diante da distribuição, injusta e desequilibrada, da carga tributária no país. Isso ajuda a explicar por que tanta indignação com o Planalto, afinal quem se cobra quando falta alguma coisa? O governo federal, claro, além das prefeituras, que frequentemente têm levado o ônus sobre serviços deficitários de outros entes. No verão de 2013/14, não foram poucas as tentativas de achincalhar a administração municipal diante da falta d'água, uma responsabilidade estadual.

Tudo isso é motivo a mais pra que o diálogo entre prefeitura e população seja mais próximo. Além de evitar cobranças indevidas, intensifica as que são necessárias e evita blindagens quase naturais, como a que acontece hoje com o governador Geraldo Alckmin. Muito do que não se diz a seu respeito tem a ver com o fato de que segurança pública, boa parte da educação e da saúde, saneamento básico e distribuição de água não são serviços reconhecidos como estaduais. E isso não acontece só em São Paulo.

Em Itararé, algumas iniciativas ajudaram a contornar um problema inicial de absoluta inoperância de comunicação, como a criação da imprensa oficial, que circula semanalmente divulgando ações do executivo municipal. A presença frequente de secretários e da própria prefeita na Rádio Clube também contribuiu, mas ainda é pouco. Existe um erro comum que contagia o poder público e que pressupõe a comunicação como um setor exclusivamente ligado à divulgação/propaganda. E isso não é verdade. Comunicação também é troca, detecção de problemas e capacidade de superá-los mediante esforços conjuntos. E nada disso acontece por aqui. Essa é uma gestão - e isso não se encerra com a figura de Cristina - presa no interior de gabinetes.

É justamente em períodos de crise que a comunicação com a população precisa ser intensificada. Menos recursos deveria ser significado de melhor aplicação. E isso também envolve capacidade de diálogo, com o objetivo de prevenir investimentos descartáveis. Exemplo disso são as alterações no trânsito - muito boas, em sua grande maioria. Mas, sem diálogo, algumas delas foram recuadas por pressão de moradores, o que muito provavelmente não aconteceria se houvesse o hábito de chamá-los para audiências públicas que discutissem os impactos das mudanças. A rua 24 de outubro, que virou mão única e depois voltou ao corriqueiro é exemplo disso. No Natal de 2013, uma ótima medida bloqueou o trânsito para carros durante a noite, incentivando o uso da rua por pedestres e colaborando inclusive com o comércio. Durou dias. E ninguém era capaz de defender algo que desconhecia por completo, porque a administração não se deu ao trabalho de perguntar qual era o desejo das pessoas, depois da apresentação de algum estudo, alguma hipótese, qualquer coisa. 

Alguém há de contra-argumentar, e com razão, que a participação das pessoas em audiências é ínfima. E isso é verdade. Mas, também, por outro lado, não tem como a prefeitura deixar mais claro que não faz questão da presença de ninguém nestes eventos. Na terça-feira passada, dia 29, a Câmara Municipal foi palco para a apresentação do último balanço quadrimestral de gastos. Mais uma vez não foi ninguém. E por quê? Porque este não é um dos hábitos do cidadão itarareense, mas fica muito difícil de reverter este quadro com uma divulgação tão desdenhosa. Não houve uma simples nota elaborada pelo executivo municipal a ser distribuída para os jornais locais que chamasse atenção para o encontro. Nem o site do município o fez. Nem o seu perfil no Facebook - sim, a prefeitura não tem uma página, e sim um perfil. Na imprensa oficial, perdido no meio dos atos oficiais, um comunicado minúsculo, obrigatório por lei, avisava. 

E isso parece bastante sintomático, como também foi o lamentável episódio de encerramento da Feira da Lua, que aconteceria na quarta-feira passada. Diante de um mau tempo bastante questionável, a Secretaria de Agricultura decidiu transferir a apresentação de Claudinho e Paulo Pipoca para a próxima semana, enquanto ainda era o início da tarde. O detalhe é que ninguém comunicou a Coordenadoria de Cultura, responsável tanto pelo pagamento dos artistas quanto pela divulgação via mídias sociais do evento. Resultado: ninguém ficou sabendo.

Enquanto isso, a oposição estava ocupada com outras coisas. Desde o início do mandato, os vereadores, obcecados em "provar o contrário", encaminharam 126 pedidos de informação ao gabinete. Além de intimidar, seu objetivo é travar a administração, que precisa parar tudo o que está fazendo para responder questões em sua grande maioria inócuas. Além disso, também há as indicações, que são basicamente uma maneira de mandar fazer sem dizer como - sem previsão orçamentária, sem nada. Alguém se lembra da Comissão Especial de Inquérito que quase foi aberta para investigar a cor que se pintou o cemitério municipal? Parece mentira, mas não é.

Enquanto isso, a oposição injeta dinheiro em guerrilha de internet, que cria montagens e perfis falsos pra disseminar ódio explícito à administração e aos membros da equipe de governo, além de expor sua intimidade. Em quase 3 anos de um governo sabidamente impopular, a oposição não foi capaz de apresentar um único projeto alternativo. 

E, se a oposição nunca falou sobre a comunicação do executivo, não com ela, mas com a população, alguém há de se perguntar: por quê? Ora, parece muito claro. Quanto menor o diálogo do governo Cristina com a população, menor a sua capacidade de ação e menor o seu respaldo. Quanto menor o diálogo, maiores as chances de dependência da Câmara, que faz uso de suas atribuições investigativas para pressionar o executivo e garantir concessões em nome da governabilidade. Isso, claro, além da permanência da impopularidade de Cristina, hoje aparentemente irreversível. Qualquer semelhança com Brasília não é mera coincidência.

Se Itararé sobrevive ou não ao jogo, só o tempo vai responder. Mas, até aqui, o município paga sozinho essa conta. Resta saber até quando.


Abraços, 
Murilo

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Estatuto da Família: um retrocesso que vai além da homofobia

por SANDRO CHAVES ROSSI



Na última quinta-feira (24/09), uma comissão especial que discute o Estatuto da Família na Câmara dos Deputados aprovou o texto principal do projeto, que define família como a união entre homem e mulher. A comissão aprovou o relatório por 17 votos favoráveis e 5 contrários, mas quatro destaques ao texto ainda precisam ser aprovados. Logo depois da votação ser concluída, o projeto segue para o Senado sem precisar ser votado pelo plenário da Câmara. Porém, os deputados podem apresentar recurso para pedir que o texto seja votado pelo plenário antes de ir para o Senado. É o que os contrários ao texto do Estatuto da Família querem.

Mas o que tem de mais no texto do Estatuto da Família? Sem focar no objetivo claramente segregador do autor do Estatuto da Família, deputado federal Diego Garcia (PHS-PR), e dos defensores dessa medida, Marco Feliciano (PSC-SP), Jair Bolsonaro (PP-RJ) e Pastor Silas Malafaia, o significado imediato dela é: somente a família formada por homem e mulher e filhos. Pelo seu artigo 2º, o Projeto de Lei estabelece que as famílias formadas por um casal heterossexual são as únicas dignas de proteção e direitos, afirmando no texto que “define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. O que, de fato, exclui famílias constituídas por casais homossexuais. 

A grande questão é que essa ofensiva contra os grupos LGBT que animou os setores mais conservadores da sociedade e do Congresso, foi uma ofensiva muito mais abrangente do que ela realmente parece. Limitar o conceito de família a apenas um casal heterossexual e seus filhos não excluiu somente casais homossexuais, mas também uma grande parcela da população que teve e tem sua família composta por mães e pais solteiros, ou até mesmo em outros diversos casos, que não são raros, quando a criação parte de outros membros da família. Por mais que o conceito de família previsto pelo Estatuto abranja uma parte majoritária da sociedade, ele atingiu muita gente que o apoia e, por mais irônico que isso pareça, a maioria ainda não percebeu isso. Não sei se o autor do projeto também teve a intenção de excluir pais solteiros, se teve, não foi surpresa nenhuma, se não teve, foi um tiro muito bem dado no próprio pé.

Uma pesquisa realizada pelo Instituto Data Popular em maio desse ano revelou que o Brasil tem 67 milhões de mães. Dessas, 31% são solteiras e 46% trabalham. Com idade média de 47 anos, 55% das mães pertencem à classe média, 25% à classe alta e 20% são de classe baixa. Pouco mais de um terço dos filhos adultos (36%) ajudam financeiramente as progenitoras. Entre as mães do século passado, 75% acreditavam que uma pessoa só pode ser feliz se constituir família. O percentual de verdade dessa premissa cai para 66% para as mães da nova geração. A pesquisa não revela os motivos que levaram as mães a criarem seus filhos sozinhos, talvez porque haja uma grande diversificação desses motivos, mas não é difícil de deduzir quais sejam esses motivos, como por exemplo, talvez o mais comum deles: o abandono paterno.

Com base no Censo Escolar de 2011, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), apontou que há 5,5 milhões de crianças brasileiras sem o nome do pai na certidão de nascimento. Essa pesquisa se baseia em dados de 2011, mas que, em sua última atualização, feita ainda nesse ano, não mostrou nenhuma diminuição desse número. O programa "Pai Presente" do CNJ, que facilita o reconhecimento de paternidade no país, já existe há quase cinco anos e conseguiu o reconhecimento de apenas 40 mil casos, o que é muito pouco comparado ao número milionário de crianças sem registro paterno. É bom deixar claro que esse é só um exemplo de um problema social e familiar que não se encaixa no Estatuto da Família proposto pela ala conservadora do Congresso e que acarreta inúmeros problemas no desenvolvimento social do país, porém é sempre bom lembrar que as mulheres também sofrem com as políticas conservadoras de um grupo hipócrita que faz panfletagem ideológica para angariar votos.

Ainda sobre a violação dos direitos das mulheres, o deputado Marcos Rogério (PDT-RO) foi quem apresentou a emenda ao Projeto de Lei nº 6.583/2013, para incluir a ideia de que a vida começa na concepção:

“Art. 3º É dever do Estado, da sociedade e do Poder Público em todos os níveis assegurar à entidade familiar a efetivação do direito à vida desde a concepção, à saúde, à alimentação, à moradia, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania e à convivência comunitária.”

O problema nisso é que, segundo especialistas, a inclusão do “direito à vida desde a concepção” pode ser uma ameaça ao direito ao aborto nas três circunstâncias em que é legal, ou seja, nos casos de estupro, anencefalia e risco de morte. Além disso, torna ainda mais difícil o processo da legalização do aborto no Brasil, até a 12ª semana de gestação, como é em outros países. Portanto, se engana muito quem acha que o Estatuto da Família restringe os direitos somente da comunidade LGBT, ele restringe outras formas de família e, além disso, retira direitos que custaram muito para serem conquistados e dificulta ainda mais a consolidação de outros novos.

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Ondjaki: uma brisa luandense num dia de calor

por LUISA DE QUADROS COQUEMALA

“Sou irmão das estrelas, acendo as primas delas aqui na terra. Lá nos céus universais, elas me cumprimentam com brilhos sorridos; ou serão sorrisos brilhantes? Toda estrela é luz bonita que nunca soube descansar de alegrar a noite. Toda noite é palco de estrelas, candeeiros e olhos acontecerem”.

Hoje, vamos falar (com prazer) de Ondjaki. Nascido em Luanda, em 1977, ele é uma figura no mínimo interessante. Formado em sociologia, terminou em 2010 seu doutorado em estudos africanos, na Itália. Além disso, o luandense já conquistou, por aqui, o Prêmio Jabuti de Literatura na categoria Juvenil. E há, ainda, a honra de termos o autor em nossas terras: atualmente, ele reside no Rio de Janeiro.

Pensar em Ondjaki é a mesma coisa que recordar a célebre declaração de JD Salinger: “O que realmente me arrebata é um livro que, quando termina-se a leitura, você deseja que o autor que o escreveu fosse um grande amigo seu e que você pudesse ligar para ele quando sentisse vontade. No entanto, isso não acontece com frequência”.

Eu não sabia exatamente o que esperar quando me deparei com seu livro de contos, e se amanhã o medo, publicado em 2005. Apesar da belíssima edição feita pela Língua Geral (minha única certeza até então), o fato de não haver expectativas deixou a surpresa ainda mais agradável. 

Ondjaki sabe pintar belos quadros. Cada um de seus contos (cenas, pequenos acontecimentos) são escritos com uma delicadeza ímpar. O autor vai fundo. Atinge aquele tipo de escrita que toca e sensibiliza, te transportando para outra realidade de uma maneira tão brilhante que arranca suspiros dos mais duros. 

O autor luandense sabe escrever, eis um fato. Em língua portuguesa, atualmente, difícil encontrar algo tão bem trabalhado, tão comovente e honesto – dando o efeito da leveza de uma brisa num dia de calor. E, afinal de contas, não foi Hemingway quem disse (acertadamente) que uma boa história precisa de alguns destes atributos para ser boa?

O livro e se amanhã o medo é dividido em duas partes (partes estas inspiradas em A Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar): horas tranquilas e conchas escuras. A primeira traz histórias mais leves, enquanto que na segunda o clima já é de mais tensão. De qualquer maneira, o panorama final é incrível, a vista é única. E, de fato, o autor consegue criar um belo livro, montado uma espécie de quebra cabeça cujas peças são justamente suas pequenas obras primas. Assim, atinge a excelência em diversos contos: coração de porco, a confissão do acendedor de candeeiros, a esquina, a filha da sogra, madrugada etc. 

Fico feliz quando leio livros como este de Ondjaki. Não apenas pelas belas doses de reflexão, mas também por minha alegria ao ver algo tão bem escrita na nossa língua. Ondjaki e seus contos conseguem arrancar sorrisos discretos e verdadeiros. E só por isso já basta ler um livro seu. 


FICHA TÉCNICA

Título: e se amanhã o medo
Autor: Ondjaki
Nacionalidade: luandense
Edição: Língua Geral (2010) e Caminho (2005 e 2010)

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

O que Gilmar Mendes não disse

por SANDRO CHAVES ROSSI



No último dia 16, o Supremo Tribunal Federal voltou a julgar a permissão para doações de campanha por parte de pessoas jurídicas. O julgamento foi retomado após Gilmar Mendes ter liberado, na semana passada, após um ano e cinco meses depois, seu voto sobre o assunto, permitindo que o caso seja retomado pelo plenário. A ação judicial proposta pela OAB sobre a doação eleitoral por empresas foi a julgamento em 2013 no STF, mas em abril do ano passado foi interrompida por Gilmar Mendes. Quando o julgamento estava 6 a 1 pelo fim das doações, ele pediu vista - que nada mais é do que um tempo para que o juiz possa analisar melhor o processo para não ter dúvidas sobre o seu voto -, e então a sessão foi suspensa.

A questão é que na volta do julgamento, Gilmar Mendes foi um sofista do nível mais baixo até então visto no STF, não se limitando apenas a argumentos, mas também a acusações rasas e atitudes que mancham o debate político em uma das esferas mais incisivas da sociedade. Mendes começou seu discurso, que demorou 4 horas, com os seguintes argumentos:

Quer dizer, voltamos ao status pré-Collor, em que se tinha doação só de pessoas privadas. O Brasil sempre teve isso. É um amontoado de caixa dois. Que essa era a realidade.
Nós temos dificuldades na situação atual às vezes de fiscalizar 20 empresas – doadoras, etc e tal. Agora imagine o número de doadores pessoas físicas com esse potencial: sindicatos, igrejas, organizações sociais, todas elas, podendo ter dinheiro que vai ser distribuído por CPF.

Logo após isso, Mendes armou uma ofensiva contra todos que o questionaram, principalmente em cima da OAB e do PT. Ao questionar a decisão da OAB em proibir a doação de empresas para campanhas políticas, Gilmar Mendes disse que "ação da OAB contra doação empresarial teve como objetivo envolver STF em trama, em conspirata pró-PT". Além do mais, Gilmar explica "conspiração": OAB fez evento com participação do hoje ministro Barroso e propôs ação no STF para depois mudar sistema eleitoral. Ele ainda enfatiza que "essas ideias coincidiam por inspiração divina com os propósitos do PT e do governo". Basicamente, o que Gilmar Mendes fez foi acusar OAB e PT de conspiração com participação de Barroso e ainda dizer, sem prova nenhuma, que o partido tem dinheiro oculto.

Por fim, Gilmar Mendes teve uma atitude inesperada, ele deixou o plenário depois que Lewandowski permitiu que um advogado fizesse a defesa da OAB de suas acusações. Gilmar Mendes diz que o advogado não poderia falar, Lewandowski interveio e disse que Mendes falou por horas e que devia dar espaço para que o advogado também falasse, ao que Gilmar Mendes responde: "mas eu sou ministro e ele é advogado!". Então se levantou e abandonou a sessão.

Poderíamos discutir a influência dos mercados na democracia, a sua importância e as suas implicações, porém deixaremos isso para depois - fica como ideia para um próximo texto, talvez. O que nós temos que lidar é com a realidade que vivemos hoje no nosso sistema político que sempre sofreu influência do capital privado dos mercados e as consequências que eles trouxeram para a democracia até hoje. Empresas que têm por instinto natural visar o lucro, dificilmente se importam com as implicações que tais atos causam na democracia brasileira, é claro que não devemos generalizar, mas há sim um grande interesse de boa parte desses empresários em usar o aparato estatal para garantir seus ganhos.

A Lava Jato evidencia isso cada vez mais. É preocupante que não se veja problema algum quando alvos da Lava Jato doaram cerca de R$ 109 milhões só para Dilma e Aécio nas últimas eleições de 2014. Esse valor foi destinado a candidatos e não partidos. Quando o assunto é partidário, temos um dado ainda mais preocupante: empreiteiras da Lava Jato doaram R$ 277 milhões para 28 dos 32 partidos Oito empresas investigadas pela PF financiaram quase todas as siglas do país em 2014, sem distinção entre governistas e oposicionistas.

Há influência do capital dos mercados não pára por aí, a cada eleição cresce o número de empresários que compõem as bancadas do legislativo federal, hoje cerca de 280 deputados são empresários, maior número até então, isso sem contar outros políticos que se elegeram com dinheiro de empresários para proteger os interesses dos mesmos, é o caso do presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Cunha teve uma das campanhas mais caras para o legislativo no ano de 2014, declarou no TSE ter recebido R$ 6,8 milhões de doações de empresas, dentre elas estão empresas do ramo de exploração de minérios, bebidas, planos de saúde e telecomunicações.

Há quem ache tudo uma grande coincidência, mas as pautas defendidas por Eduardo Cunha nesse ano foram todas visando o favorecimento dos empresários, como a terceirização do trabalho, que permite a empresa contratar um empregado sem seguir a CLT; a PEC 451 que visa diminuir os recursos federais repassados ao SUS e a aprovação na doação de empresas para campanhas eleitorais, esta última votada duas vezes através de uma manobra irregular, mas que parece não ter relevância para Eduardo Cunha. Além dessas pautas, Cunha também disse que a regulamentação da mídia, algo que é de suma importância para a democracia brasileira, só será votada "por cima do seu cadáver". O que Gilmar Mendes não disse nessa última quarta-feira, está sendo dito por Eduardo Cunha desde o começo do ano: empresa não faz doação, faz investimento.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Comissão de recursos do PT adverte publicamente o vereador Willer

Decisão mantém em aberto a situação do político no que diz respeito às próximas eleições. A definição pode estar nas mãos da presidenta Dilma

por MURILO CLETO

Foto: Câmara Municipal de Itararé


Conforme manifestação apresentada no último dia 24, A Comissão de Recursos do Diretório Estadual do Partido dos Trabalhadores decidiu advertir publicamente o vereador itarareense Willer Costa Mendes depois da reclamação apresentada pelo Diretório Municipal diante da postura do legislador frente ao poder executivo, comandado pela sigla. De acordo com o documento, o legislador está proibido de se manifestar em nome do partido a respeito de qualquer questão que o envolve. Na prática, no entanto, a atividade parlamentar continua normalmente em vigor.

A decisão mantém em aberto a situação de Willer no que diz respeito às próximas eleições em 2016. Isso porque, se permanecer no partido, o vereador não será lançado, por razões óbvias, à reeleição. Se for desligado por vontade própria, deve perder o mandato em vigor, considerando o entendimento da Justiça Eleitoral de que a cadeira pertence à coligação e não ao político. Por isso, há quem aposte na hipótese de que a vontade do vereador era de ser expulso do partido, o que poderia permitir a transição para outra sigla sem a ameaça de perda do mandato.

Seja como for, a lei eleitoral em vigor determina que, para lançar candidatura, o proponente precisa ter no mínimo um ano de filiação. Portanto, o prazo máximo para uma transição seria o próximo dia 2 de outubro. Isso, claro, se a presidenta Dilma não sancionar até esta data a minirreforma eleitoral aprovada pelo Congresso e que reduz esse prazo para apenas 6 meses. A tendência é a do veto, considerando a posição da bancada do partido diante do conjunto de propostas.

Confira, na íntegra, a decisão da comissão:

A Comissão de Recursos, PT SP, reunida em 24 de agosto de 2015, em sua sede estadual, na Rua Abolição, 297 – Bela Vista, São Paulo/SP em face do relatório da Comissão de Ética e Disciplina do Diretório Municipal PT Itararé, encaminhado ao Diretório Estadual PT SP pela Comissão Executiva Municipal e a NÃO APRESENTAÇÃO das Contra Razões pelo Vereador Willer Costa Mendes e considerando o Art.70 do Estatuto do PT que diz "O partido concebe o mandato como partidário, e os integrantes das Bancadas nas Casas legislativas deverão subordinar sua ação parlamentar aos princípios doutrinários e programáticos, às deliberações e diretrizes estabelecidas pelas instâncias de direção partidária, na forma deste Estatuto”, por UNANIMIDADE decide: aplicar ao Vereador Willer Costa Mendes as penas de: ADVERTÊNCIA PÚBLICA com base no Art. 228, inciso I e SUSPENDER OS DIREITOS POLÍTICO- PARTIDÁRIOS DO VEREADOR por 90 (noventa) dias a partir da data do recebimento da notificação via AR, conforme Art. 228, inciso IV, § 4º, por infringir o art. 227 incisos I e II do Estatuto do Partido dos Trabalhadores, estando impedido de utilizar e ou se manifestar em nome do Partido dos Trabalhadores, conforme o estabelecido no art. 13, incisos I, II, VII-a, VIII, IX, X, XI, XII, XIII e XVI.