terça-feira, 7 de abril de 2015

A maioridade da barbárie

por CLÓVIS GRUNER


A poucos meses de completar 25 anos, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) sofreu, na semana passada, dois duros golpes. O primeiro foi a morte de Eduardo Jesus Ferreira, de apenas 10 anos, assassinado com um tiro na cabeça por um PM em frente à sua casa, no Complexo do Alemão, mais uma vítima na interminável e fracassada guerra ao tráfico. O segundo foi a aprovação, pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, da PEC 171/93, que reduz a maioridade penal para 16 anos. Embora o percurso até sua votação no Plenário seja ainda longo, a aprovação pela CCJ, o amplo apoio principalmente entre os deputados das bancadas evangélicas e “da bala”, e as reações de aprovação que provocou reforçam a impressão de que fizemos, no Brasil, a opção pela barbárie.

Embora considerado um modelo de legislação no que tange à proteção da criança e do adolescente, citado como referência por organizações como a Unicef, o ECA nunca mereceu o mesmo respeito e consideração do Estado brasileiro e dos brasileiros. Para um número expressivo destes, que simplesmente o desconhecem, ele é visto como um estorvo protecionista, a impedir que crianças e adolescentes infratores sejam alcançados pelo “rigor da lei” ‒ e basta lembrar que 90% dos brasileiros apoiam a redução da maioridade penal, o que ajuda a entender algumas das razões que levaram um Congresso atolado até o pescoço em escândalos e denúncias de corrupção, e desacreditado por uma parcela expressiva dos eleitores, a também apoiá-la.

Já o Estado se mostrou, neste um quarto de século, incapaz, incompetente ou simplesmente pouco interessado em garantir, na prática, o que o ECA pretendeu assegurar na legislação. Aprovado no bojo da retomada democrática e da promulgação, apenas dois anos antes, da nova Constituição – chamada de “cidadã” –, o ECA tomava a ideia de proteção no sentido o mais amplo possível da palavra, visando por meio de políticas públicas que almejavam, pelo acesso à educação, a cultura, ao lazer, etc..., oferecer e assegurar a crianças e adolescentes condições para o seu pleno desenvolvimento físico, intelectual e social.
Falhamos. Hoje, é o próprio Estado um dos principais responsáveis pela crescente violência que produz vítimas entre aqueles que ele, justamente, deveria proteger. A desproporção entre o número de adolescentes envolvidos em crimes contra a vida – apenas 0,013% de um total de 21 milhões de adolescentes brasileiros, segundo a Unicef –, e o número deles mortos diariamente em ações policiais nas periferias brasileiras deveria provocar algum tipo de incômodo e desconforto, embora isso não pareça afetar a maioria. De acordo com o Mapa da Violência de 2014 , mais de 33 mil brasileiros entre 12 e 18 anos foram mortos entre 2006 e 2012 em todo o país; entre os jovens assassinados, 77% são negros. O mesmo estudo mostra que o número de assassinatos entre jovens negros é inversamente proporcional ao de brancos: enquanto entre estes os índices apontam para uma diminuição na última década, entre aqueles, ele cresceu.

“Branco sai, preto fica” – Parte expressiva destes números é de vítimas da violência policial. Exemplos recentes: em fevereiro, Alan de Souza Lima, de 15 anos, foi morto em Palmeirinha, subúrbio do Rio de Janeiro, e seu assassinato só não caiu na vala comum das estatísticas forjadas porque o próprio Alan o filmou com seu celular enquanto agonizava. No mesmo mês, a PM de Salvador executou 12 jovens moradores da Cabula, na periferia da capital baiana. Na semana passada, foi Eduardo Jesus Ferreira, de apenas 10 anos, que parte da imprensa insistiu em tratar como “o menino morto”, um lapso que denuncia o quanto a morte de adolescentes pobres e negros no Brasil foi a tal ponto naturalizada e banalizada, que já nem é mais preciso dar-lhes um nome. Mas há mais coisas em comum nestas mortes que a pouca idade de suas vítimas

A começar pela cor de suas peles, a acusar o racismo institucionalizado no aparato repressivo do Estado, mas que é sistematicamente negado pelos seus agentes e por boa parte da população branca. Em todos os casos mencionados, a reação de governos e governantes foi vergonhosa: na Bahia, administrada pelo PT, o governador Rui Costa chegou a comparar a chacina perpetrada pela sua polícia à (in)decisão de um artilheiro diante do gol. Em entrevista a um programa televisivo na noite de domingo, o governador carioca Luiz Fernando Pezão, do PMDB, foi enfático ao afirmar que o Complexo do Alemão será “reocupado” pela polícia, isso no mesmo dia em que a família de Eduardo se despedia dele em uma cerimônia realizada no Piauí, seu estado natal. 

Não é difícil opor à redução da maioridade penal razões que mostram, para além de sua face desumana, a ineficiência da medida sob o ponto de vista, inclusive, da diminuição dos índices de violência e criminalidade, principal razão alegada pelos que a abonam e reivindicam. Da mesma maneira, não faltam vozes especializadas, dentro e fora do Brasil, a apontar os muitos equívocos e riscos da mudança. Mas nada disso importa aos cerca de 90% de brasileiros que a aprovam e parecem bastante confortáveis com a perspectiva de, em um futuro que eles desejam próximo, adolescentes apodrecerem em nossas prisões e penitenciárias degradantes e superlotadas. A redução da maioridade penal tornou-se mais uma peça no imenso edifício de desinformação e intolerância que estamos a construir cotidianamente.

Aos gritos de “branco sai, preto fica”, a PM do Distrito Federal invadiu em 1986 um baile em Ceilândia, periferia de Brasília, deixando para trás memórias de sofrimento e dor recentemente fabuladas no filme de Adirley Queirós. Quase 30 anos depois, as mortes de Eduardo Ferreira e de tantos outros jovens brasileiros escreve um novo capítulo de uma velha história: nas periferias brasileiras e para suas populações pobres e quase sempre também pretas, a redução da maioridade penal já é uma realidade mesmo quando não há mal a ser “reparado” – e a intervenção militar é uma experiência cotidiana. Se antes pautávamos nossa conduta pela indiferença hoje, estimulados pelo medo e o ódio, clamamos por mais violência e celebramos o horror de tudo isso tirando selfies com assassinos fardados. 

Cidadãos de bem, afinal, precisam dormir em paz.

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