segunda-feira, 13 de abril de 2015

O Triunfo da Vontade

O que junho de 2013 e agora março e abril de 2015 nos ensinaram é que a democracia encontra-se numa encruzilhada. O recado implícito das ruas é muito claro: ou a democracia se reinventa ou abre caminho de vez para a barbárie

por MURILO CLETO



Ainda na ressaca das declarações de Levy Fidélix, candidato do PRTB à presidência da República, durante o debate de 1º turno promovido pela TV Record no ano passado, Clóvis Gruner recuperou Hannah Arendt e Jünger Habermas para falar sobre o sentimento, crescente e aparentemente irreversível, de "horror à política" no Brasil contemporâneo.

De acordo com historiador, Habermas criticou em Arendt o que considerava uma concepção "idealizada" de política. Para a filósofa alemã, a política é o lugar do aparecimento de rostos, multiplicidades, diferenças e intervalos, razão pela qual, segundo ela, o sentido da política é a liberdade. A política que para Arendt é baseada na pluralidade entre os homens, para Habermas trata-se apenas de uma "estilização da polis grega", modelo impraticável pelo aumento e complexificação das sociedades contemporâneas, em que as democracias representativas exercem de maneira satisfatória o papel de mediadoras dos conflitos internos estabelecidos.

O resultado da supremacia do modelo de Habermas, insisto em Gruner, é a despolitização da política. E isso por razões muito simples: cada vez mais distante da pluralidade entre os homens, tal como apontou Arendt, a democracia representativa caminhou para o próprio ostracismo nas últimas décadas. Distante da interlocução direta, a política institucional tornou-se alheia aos problemas reais das ruas e criou uma geração de indiferentes a ela. Pior do que isso, outrora adormecida em descaso, essa é uma geração que reapareceu agora banhada pelo horror.

Os sintomas deste diagnóstico já são muitos. Nas Jornadas de Junho, a rejeição aos partidos e movimentos sociais mais ou menos alinhados à política institucional deu as caras com um verdadeiro show de horrores nas ruas. Agredidos e apartados, militantes que ostentaram outra bandeira que não a do Brasil viram-se fadados ao banditismo diante de um movimento que se classificou como "apartidário". Em 15 de março e 12 de abril, camisas da seleção brasileira e estandartes anti-PT deram o tom dos protestos.

Não por acaso, a partir de 2013 a emblemática figura do personagem Batman tem sido evocada nas ruas. Resultado do fracasso do Estado nas políticas públicas de segurança e do descontentamento geral de uma população fadada à criminalidade, o herói age como resposta espontânea ao que nunca se conseguiu resolver com base no Direito. Legalmente errado, mas moralmente certo, Batman ataca a delinquência a partir das próprias convicções, corroboradas pelas demais, e é popularmente glorificado por isso.

No Brasil, ascendem cada vez mais os "salvadores da pátria", tal como classificou Luis Felipe Machado de Genaro as lideranças dos protestos convocados pelos grupos Vem Pra Rua, Movimento Brasil Livre e Revoltados On Line em março. Apesar de surfar na ampla rejeição ao PT, a oposição também tem muito o que temer neste cenário de horror à política convencional. Isso porque um dos seus principais desdobramentos é a surdez coletiva diante de "tudo o que está aí", o que favorece a eclosão de reivindicações que clamem por uma "intervenção" - eufemismo pra "golpe" - militar.

No penúltimo sábado, dia 4, o autoproclamado grupo mais moderado de oposição ao governo compartilhou pelo Whatsapp um vídeo intitulado "O maior inimigo do Brasil", referindo-se ao Foro de São Paulo. De acordo com o material lançado pelo Vem Pra Rua, a reunião "é a base de nossos problemas". Paranoica com um socialismo no Planalto que só ela vê, a direita toma as ruas com palavras de ordem que causam inveja ao mais engajado macartista.

Em 15 de março, uma gravação flagrou manifestantes em verde e amarelo marchando pelas ruas de Porto Alegre que se dirigem à janela de um prédio gritando ferozmente "vai pra Cuba!" diante de uma bandeira da Catalunha. Em Brasília, um professor de história levantou uma faixa contra a maior referência brasileira em Educação, Doutor Honoris Causa em 28 universidades no mundo: "Chega de doutrinação marxista. Basta de Paulo Freire", dizia o letreiro, ao lado de uma foice e um martelo censurados. Ontem sobrou até para Montesquieu, ofendido por integralistas indignados com a separação de poderes proposta no século XVIII: "Montesquieu, vai tomar no cu", gritou o manifestante do alto de um carro de som em São Paulo. "Fora todos os partidos políticos!"

A respeito do escândalo envolvendo a manifestação contra Freire, o jornalista Matheus Pichonelli destaca o recente desenvolvimento de um anti-intelectualismo que surpreendentemente orgulha-se da própria ignorância. Há poucas semanas, ainda na esteira das manifestações de março, viralizou na internet um texto em que a autora sustenta a própria presença nas ruas, protesta contra intelectuais e atribui um título alternativo à publicação: "e não venha querer me ensinar história".

Há bons motivos para entender que estes não são casos isolados. Em artigo publicado no Le Monde Diplomatique, Pablo Ortellado recorre a James Hunter para discutir os efeitos das "guerras culturais" sobre o Ocidente dos anos 1980 pra cá. A expressão opõe "conservadores" e "progressistas" nos debates que passam a pautar o debate político a partir de então: legalização de drogas e aborto; direitos homossexuais; e controle de armas, por exemplo.

De acordo com uma releitura de Hunter nos anos 90, este antagonismo é orientado por duas "concepções de autoridade moral" metaforizadas pela ideia de um pai rigoroso de um lado e um pai carinhoso de outro. Ambas, por sua vez, buscam desqualificar a sua antagonista a partir de alguma incoerência de princípios. "Se a proteção à vida é um princípio religioso supremo, por que conservadores que condenam o aborto frequentemente defendem a pena capital? Se, para os progressistas, a proteção à vida é um direito humano, por que se mostram tão insensíveis à morte dos fetos humanos decorrente dos abortos?", exemplifica Ortellado.

Apesar de não ser nova - afinal já no século XIX apontava-se a pobreza dos trabalhadores como fruto da indolência -, a correlação entre discurso moral e político retornou com força a partir das guerras culturais depois de um período de relativa calmaria, quando, no pós-guerra, o discurso liberal adquiriu forma de moderação com um Estado que tratou questões sociais e econômicas como problemas administrativos. Após os anos 80, no entanto, o discurso liberal adquiriu contornos de ódio e repúdio pelo Estado de bem-estar social. Nos últimos anos, o espectro do socialismo tem ocupado o imaginário deste delírio que atribui qualquer ação social à complacência com a vadiagem. É o que explica, também, a ampla rejeição a programas assistenciais como o Bolsa Família.

Diante dos debates em torno da proposta de redução da maioridade penal, aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, Yara Frateschi retorna a Hobbes para relacionar este discurso de ódio a uma "limitação moral" dos indivíduos que, movidos pelo ódio e pela esperança, segundo o filósofo seiscentista, não têm condições de reconhecer o outro como alguém com uma história própria de vida. Muito embora a proposta caminhe exatamente na contramão de todas as recomendações de especialistas em segurança pública e entidades dos direitos da criança e do adolescente, a crescente sensação de que os menores são cooptados pelo crime utilizando-se de uma brecha constitucional acende o desejo, íntimo e incontrolável, de encarceramento a qualquer custo.

De volta a Ortellado, percebe-se a inversão da ordem estabelecida pelo discurso moral oitocentista. Se antes ele era orientado pelo político, agora, e cada vez mais, o discurso moral tem pautado o político. E o resultado pode ser facilmente conferido nas ruas, nas redes e nas urnas. Ilustre desconhecido até alguns anos atrás, Jair Bolsonaro tornou-se o mais bem votado candidato a deputado no Rio de Janeiro e já anunciou a candidatura à presidência da República em 2018 - se possível, com o Partido Militar Brasileiro, que luta pelo registro junto ao TSE. Com os cumprimentos de eleitores e selfies, foi ovacionado nos protestos de ontem. Marco Feliciano, Magno Malta, Eduardo Cunha: não são poucos os políticos que fizeram carreira com pautas que são exclusivamente morais. O próprio Levy Fidélix, que tinha tudo para ser descartado do universo político diante das declarações homofóbicas, utilizou o episódio a seu favor e tem reunido cada vez mais seguidores nas redes sociais. Os comentários nas suas publicações, diga-se de passagem patrocinadas, recebem comentários majoritariamente favoráveis à sua postura.

Em 1934, Leni Riefenstahl filmou o que seria a obra-prima do 3º Reich na Alemanha. O documentário sobre o 6º Congresso do Partido Nazista apresentou, com técnicas de ficção, o que não era possível pôr apenas em palavras. Um mar de gente ovacionando o homem que entendeu todas as insatisfações dos alemães e as concentrou em discurso, mas não o convencional. Foi a negação da política institucional que tornou Adolf Hitler diferente dos demais e fez dele símbolo do sepultamento dos valores iluministas, considerados os grandes causadores da degradação moral do Ocidente. O Brasil de hoje não é a Alemanha de ontem, mas esta memória não pode ser esquecida: 6 milhões de judeus foram executados pelo "triunfo da vontade" ou pela ascensão de um discurso moral que se sobrepôs ao político.

Especialmente Luciana Genro e Marina Silva tentaram, cada qual a seu modo, nas eleições presidenciais, se apropriar dos gritos que ecoaram nas ruas em 2013. Não funcionou nem de longe. Essa é uma geração que cresceu desligada à política e amadureceu com raiva dela. O que junho de 2013 e agora março e abril de 2015 nos ensinaram é que a democracia encontra-se numa encruzilhada. A mesma civilização que por um lado ostenta a evolução da horizontalidade nas relações de poder e comunicação, graças à emergência da sociedade de redes, onde pouco a pouco os intermediários são eliminados na cadeia de contatos, por outro escancara uma brutal limitação através de um sistema político obsoleto muito distante do que a polis grega anunciou há 2.500 anos.

O recado implícito das ruas é muito claro: ou a democracia se reinventa ou abre caminho de vez para a barbárie. A julgar pelo que se viu ontem, a barbárie está na frente.


Abraços,
Murilo   

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