terça-feira, 14 de julho de 2015

Passagem para Ararat: uma viagem para dentro de si mesmo

por LUISA DE QUADROS COQUEMALA

"O céu lá fora estava claro, brilhando com suas estrelas. Mas naquele exato momento a escuridão do mundo parecia dominar tudo, como o sentido das vozes que não haviam sido ouvidas."


Quando se lê Passagem para Ararat uma coisa fica clara: eis um livro que faz refletir. Michael J. Arlen, seu autor, é filho do também escritor Michael Arlen (que, infelizmente, não tem a atenção devida de nossos editores). Contudo, Michael Arlen também pode ser reconhecido como Dikran Kouyoumjian – seu “nome armênio”.

De fato, Michael Arlen foi um escritor de naturalidade armênia. Muito jovem, mudou-se para a Inglaterra e, posteriormente, para os Estados Unidos. Seu filho percebeu desde cedo a dificuldade e discrição que o pai tinha quando o assunto era sua nacionalidade armênia. Consequentemente, Michael J. Arlen também acabou por conviver com uma questão complexa, que será o ponto de partida e guia de todo o livro: “Numa determinada época de minha vida, parti numa viagem para descobrir por mim o que significa ser um armênio”. Esta é a base do enredo límpido e autobiográfico que Michael compõe. 

Diante das dúvidas a respeito de sua origem e frustrado com a distância intransponível que os livros de história podem trazer, Michael e sua esposa viajam à Armênia depois do conselho de um conhecido (também de origem armênia). Michael chega à terra paterna e não parte apenas em busca de simples respostas, mas também de um autoconhecimento mais profundo. Contudo, o tipo de conhecimento pessoal que ele busca está ligado diretamente com sua ascendência armênia e, assim, com toda a questão da história e cultura de tal país – e é aí que ele consegue estruturar de maneira brilhante o enredo.

Ao mesmo tempo em que passa por diversas experiências e conhece pessoas no mínimo curiosas, como o guia Sarkis, Michael J. Arlen contempla através de livros a história armênia - e, estando em território armênio, as histórias que outrora pareciam tão distantes começam a se tornar palpáveis. De uma maneira didática e compenetrada, Michael relata, juntamente com suas experiências pessoais, todo o percurso traçado pelo país: a antiguidade, com os reis de Nairi; a ascensão do Império Romano e sua relação com o território armênio; a participação dos armênios nas cruzadas; o início das relações entre armênios e turcos etc. É, sem dúvidas, uma bela aula de história. 

Arlen, contudo, cresceu nos Estados Unidos e, em detrimento disso, há uma dificuldade visível em se reconhecer como armênio, mesmo sabendo das raízes de seu pai. Ao mesmo tempo, porém, ele sente que tem uma relação com aquelas pessoas, aquela terra.

Michael nota, sobretudo, a incrível recorrência com que os armênios falam sobre seus sofrimentos. O autor, então, procura se aprofundar nessas questões. Poderíamos afirmar que o “ponto de virada” da história acontece justamente no momento em que Michael lê a respeito dos maus tratos que os armênios sofreram. Primeiro, com uma matança ocorrida em 1894; em seguida, com o destruidor genocídio que aconteceu em 1915, durante a primeira guerra mundial, deixando mortos um milhão e meio de armênios – que, por conta disso, perderam grande parte de suas terras e bens. Em seguida, ele também se depara com a negligência e esquecimento por parte do mundo em relação ao banho de sangue que foi o genocídio armênio.

Através de reflexões bem formuladas, é impressionante notar como Michael passa a se ver como um armênio a partir do momento em que entende a dor e riqueza cultural de seu povo. É por isso que, logo na primeira frase, escrevi que é um livro que faz pensar: a partir do momento em que Michael é capaz de entender todas injustiças e silêncio acerca do primeiro genocídio do século XX, ele entende a “mancha” que se carrega por ser armênio – algo que não será deixado para trás enquanto a devida atenção não for dada ao caso.

Assim, a questão da memória é colocada brilhantemente diante do leitor. Os armênios são indubitavelmente um povo que possui memória e que clama por justiça. E fica clara, então, a relação entre a memória, a história de um povo e o reconhecimento pessoal que isso pode acarretar.

Fica exposta no livro a importância de se conhecer a história de seu próprio país para, então, o próprio indivíduo também se conhecer. Ao buscarmos o entendimento histórico, conseguimos conservar uma memória, lutar por nossos direitos e reconhecermos uma parte de quem somos. De modo que, por mais que a narrativa se passe na Armênia, a mensagem que o livro transmite se torna válida até para o próprio Brasil - país que reluta em falar a respeito de culpas como as da ditadura e que vota projetos de lei (como a maioridade penal, por exemplo) sem levar em conta as estruturas sociais ligadas inevitavelmente à própria história e formação do país. As discussões que o livro suscita mostram aquela universalidade romanesca que transforma um simples relato em um belo livro.

Como Arlan, deveríamos resignarmo-nos e nos aprofundar com uma curiosidade saudável em nossas próprias histórias e dores – e, a partir de então, refletirmos mais sabiamente a respeito de nós e de nossa realidade.

Apesar de haver a discussão acerca de nacionalidade e traumas passados, não se trata, no livro, de chauvinismo desenfreado. O que está em pauta é um reconhecimento mais profundo e resignado dos erros (humanos, demasiado humanos) que foram cometidos – e sobre como nós, frutos de uma história, podemos consertar esses erros e nos tornamos pessoas melhores.


Livro: Passagem para Ararat
Autor: Michael J. Arlen
Nacionalidade: Armênio-americano
Edições publicadas no Brasil: Paz e Terra (1978)

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