terça-feira, 25 de agosto de 2015

Mia Couto e a beleza que há no mundo

Como o autor moçambicano faz um belo trabalho de reflexão em uma de suas mais encantadoras histórias

por LUISA DE QUADROS COQUEMALA


“Mas aqui, nos arredores deste forte, não há senão uma magrita frangipaneira. Enterraram-me junto a essa árvore. Sobre mim tombam as perfumosas flores do frangipani. Tanto e tantas que eu já cheiro a pétalas.”


Quando decidi ler um livro cuja autoria fosse moçambicana, logo pensei em Mia Couto. Com certeza há outros grandes autores no país e eu poderia ser menos clichê, mas, perdoem-me, não pude evitar. Sempre quis encarar Mia Couto, e eis que a oportunidade se abriu para mim.

De cara, já há uma grande vantagem nos livros do autor (além do simples fato de ele ser Mia Couto): em Moçambique, fala-se também português. Seus livros são escritos no português de lá, de modo que pode-se ler um livro dele com fluidez, sem necessidade de traduções, aproveitando e degustando a obra na sua língua natural. 

E, acreditem, encarar um livro de Mia Couto é uma experiência única. Por uma questão de tempo e disponibilidade, escolhi um pequeno livro chamado A varanda de frangipani, lançado em 2003.

O enredo, por sua criatividade e sensibilidade, chama a atenção logo de cara: Armelindo Mucanga é um xipoco, espírito que ainda não morreu inteiramente por não ter sido enterrado com as devidas condecorações. Mucanga morreu às vésperas da conquista da independência moçambicana, em 1975, e foi enterrado numa fortaleza que posteriormente transformou-se no asilo onde se passa a história.

Por mais que não tenha lutado por seu país, vinte anos após a sua morte, as autoridades resolvem fazer de Mucanga um herói nacional. O xipoco, debaixo da terra, indigna-se, protesta. Como assim, um herói nacional? Além de não ter contribuído com seu país para a independência, toda sua paz, abaixo da árvore de franginapi, acabaria.

Sem saber o que fazer, o espírito pede ajuda a seu amigo, o pangolim, espécie de tatu africano. O pangolim, com sua sabedoria milenar, informa o espírito que, para impedir sua condecoração e, ao mesmo tempo, conseguir morrer de vez, ele precisa cumprir uma tarefa simples: voltar para o mundo dos vivos, entrando no corpo de alguém que morrerá logo.

Começa, assim, a parte policial do livro. Mucanga decide que entrará no corpo de Izidine Naíta, detetive cujo óbito ocorrerá em seis dias e que está indo para o asilo investigar a misteriosa morte de Vasto Excelêncio, seu falecido diretor. 

Para descobrir o autor do crime cometido contra Excelêncio, Izidine deve interroga os moradores do asilo, deparando-se com todo tipo de depoimentos e, claro, contradições – já que todo mundo diz ser culpado do crime. 

Quem narra tudo isso é o próprio xipoco Mucanga, agora presente dentro do corpo do detetive (que, mesmo estando ocupado, não deixa de pensar ou agir por si mesmo). Contudo, outra característica notável é a maneira como Mia Couto coloca a história diante de diferentes pontos de vista narrativos porque, enquanto o detetive está interrogando, o narrador da história passa a ser quem está sendo interrogado. Portanto, a figura do narrador transita, sendo ora o espírito de Mucanga, ora algum idoso habitante do asilo, durante seu interrogatório. Assim, tudo fica ainda mais complexo e interessante.

Imediatamente, toda estrutura montada por Mia Couto já me surpreendeu e cativou por ser algo criativo, bem trabalhado e encantador. E é assim durante toda a leitura, onde um enredo envolvente faz de nós inquietos enquanto não a concluímos.

Para melhorar mais ainda sua pequena obra prima, Mia Couto ainda acrescenta mais um ingrediente na história: a questão da história recente de Moçambique, tão marcada por sua independência, pelo colonialismo e pela sobrevivência de seus costumes.

Num país com uma história recente conturbada, cuja independência foi conquistada somente em 1975, há também a importância de reconhecer o próprio passado. Ir para frente, mas não deixar de olhar para trás. A presença dos idosos deixa isso bem marcado. Mas, para além disto, há também a dificuldade não apenas do xipoco, mas do detetive Zaíta, o desafio de repensarem o passado de seu país. E, enquanto não o fizerem, seus próprios problemas e os problemas do asilo não poderão ser resolvidos.

Acredito que, além de belo e poético, o romance de Mia Couto também acaba sendo filosófico pela quantidade de temas e questões que aborda em apenas 140 páginas. Mia Couto, biólogo, participante ativo na luta a favor da independência, me parece deixar um recado sincero: em meio ao caos, é importante não se esquecer da mágica e beleza que o mundo possui.

EDIÇÕES NO BRASIL

Título: A varanda de frangipani
Autor: Mia Couto
Nacionalidade: Moçambicano
Editora: Companhia das Letras

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