quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

A epopeia de um tri

por MURILO CLETO

Foto: Agência Pública


O relógio marcava 4 da tarde quando olhei pro céu e vi que o tempo ia fechar. Finais me deixam muito nervoso e, até aquela hora, eu ainda não havia decidido onde ver o jogo.

Como reza a cartilha, botei a mochila nas costas, peguei a bicicleta e parti em direção à faculdade mesmo assim, contando com mais uma chuva de verão, daquelas que estouram durante as aulas e depois somem como se nada tivesse acontecido.

Meu plano era perfeito. Chegaria como quem não quer nada na turma da segunda aula perguntando se eles topavam começar a prova um pouquinho antes. Assim, quem sabe, eu poderia não perder tanto do primeiro tempo no Allianz Parque. A meu favor, ainda contou um barulho ensurdecedor que vinha do auditório e que provocou uma mudança de sala. Acabamos com outra turma do curso, que já faria a sua prova ali com outro professor. Se batesse o desespero, pensei, era só sair correndo sem a consciência pesada de que eles não teriam pra quem entregar o papel.

Seria um plano perfeito se eu não tivesse que buscar alguns alunos perdidos pelos corredores e que, pra meu desespero, ainda não sabiam da mudança. Seria, também, se antes, no meio do caminho, eu não tivesse notado que esqueci as avaliações em casa. A maior subida de todas tinha acabado de ser superada. Mas não voltar não era exatamente uma opção naquele momento. Eu, que não sou muito de suar, já cheguei ensopado.

Horas antes, gravei, pela primeira vez, minha versão do hino do Palmeiras na guitarra. Nem lembrava mais como era, mas achei que era o momento oportuno. Era preciso transbordar aquele misto de sentimentos, com paixão, euforia, ansiedade e sei lá mais o quê nessa panela. Na primeira tentativa, estourou a corda ré. Tudo bem, tenho várias aqui, me confortei. Mas não achei nenhuma equivalente, então tive que tirar de outro instrumento. Só depois que o fiz percebi que tinha visto errado e tava achando até então que se tratava da lá. Tudo bem, era só trocar direito agora. Troquei.

E toquei, depois de ter vestido a camisa da sorte que mandamos fazer na loja da Malu pra jogar contra rivais nos gramados sintéticos da cidade. Considero-a desta forma porque, pelo menos aqui, era um massacre atrás do outro a nosso favor. Nunca responsabilidade minha, diga-se. O que vocês não sabem é que eu havia errado imperdoavelmente de cálculo e precisei encontrá-la no cesto de roupas sujas. A Renata ainda não sabe, mas passei assim mesmo pra vestir. O preço de um sovaco cheiroso, ou seja, um caminhão de energias ruins pra São Paulo, era alto demais pra quem teria João Pedro aquela noite na lateral direita.

Apesar dos imprevistos, tudo correu conforme o combinado. Caiu o mundo durante a primeira prova. E logo depois parou. Esqueci de combinar direito com São Pedro e a chuva voltou. Depois de acomodar todo mundo na nova sala, inclusive os perdidos, voltou a chover torrencialmente. Àquela altura, mesmo a gentil oferta do professor são-paulino Luis Fernando, de atendê-los pra mim, era inócua. Com o texto da semana atrasado pra revista, tive que levar o computador na mochila. E sair daquele jeito era suicídio. Pelo menos pra máquina.

Ainda era cedo quando acabei de recolher todas as avaliações. Fui conferir o tempo de novo, como se o barulho no teto de eternit não bastasse. Resolvi ir pra sala dos professores acompanhar o primeiro tempo, que já tinha começado, pelo Twitter e pelo lance a lance do Globo Esporte. Sinceramente, acompanhar uma final pelo lance a lance é algo que não desejo pra mais baixa das minhas inimigas. Além da demora nas atualizações, eles consideram um lance, por exemplo, a troca de shorts do Zé Roberto. Tempo perdido em vídeo que poderia ser destinado à rede social que é bem mais dinâmica. Lá, um arrombado resolveu compartilhar um tuíte do Milton Neves que dizia “Gol do Palmeiras!”. Demorei uma eterna fração de segundo pra perceber que era de abril.

Não tinha jeito, eu precisava ir embora. Põe num plastiquinho aí, tinha sugerido o Luis Fernando pro notebook não molhar. O único que tinha era o das provas. E ele serviu até a metade, não sem rasgar. Como um fugitivo de Prison Break, corri em direção ao bicicletário e, depois da mais longa abertura de cadeado da história da humanidade, pedalei como se não houvesse amanhã em direção à Vila Osório. Não moro mais lá, mas é mais perto e eu poderia, pelo menos, esperar um pouco até a chuva diminuir assistindo ao jogo, enfim, numa TV.

Tudo apagado. Minha mãe dorme cedo. Como não pensei nisso antes? Tudo bem, é caminho pra casa. A essa altura, meu grau e meio de miopia já nem faziam mais diferença. Nem quando achei que esses quebra-molas na rua fossem, sei lá, sapos. Era melhor guardar os óculos na bolsa do que ficar com aquela visão agoniante de para-brisa sem limpador. Depois de comemorar a travessia sem queda por um pequeno trecho no paralelepípedo, no cruzamento entre as ruas Itararé e São Pedro, um carro me lavou após passar por uma poça d’água. Senti o encharque particularmente no mamilo esquerdo.

Ofegante, cheguei em casa ainda meio atordoado. Antes de guardar a bicicleta, liguei a TV. Foi só então que me lembrei do problema no controle do receptor. Uma espécie de retardo o tem acometido há algumas semanas, mas nunca tinha precisado ligá-lo com urgência mesmo. Nova tortura. Aperto os botões e ele não obedece. Ou obedece, mas não sinaliza, e acabo apertando mais botões. Foi parar num canal de celebridades, ou algo assim, nem lembro mais.

Ensopado, ainda em pé e com a bicicleta na sala, finalmente chego ao SporTV. O primeiro tempo tinha acabado de terminar. Não preciso nem contar que, durante o intervalo, a chuva deu uma trégua.

Mas quem se importa? Ao final da cobrança de pênaltis, disparei no corredor de casa, sozinho, exatamente como há 17 anos, quando Oséas acertou aquela bola inexplicável no gol do Cruzeiro dando a Copa do Brasil pela primeira vez ao campeão do século XX. Escrevo agora do mesmo computador que sobreviveu pra contar essa história. Ao fundo, toca a trilha sonora registrada com a mesma camisa fedorenta que, dessa vez, penso seriamente em nunca mais lavar. As provas dos alunos eu já sequei. Só espero que Anna Beatriz, minha editora na revista, entenda o atraso do texto da semana. Se não entender, tudo bem. Não é todo dia que se podem vencer tantas batalhas duma só vez.

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